2016-02-22

[anuário]

[anuário]

como um inconveniente nascimento e um texto de cioran
não sei ainda se os golpes do tempo trarão um vinho novo
ou se o esquisito tempo esbaterá a perda do voo terreno.
sei no entanto que a leveza do tempo é ponte suspensa
que separa os segredos  breves lumes de todas as tardes.
míopes turvam-se as noites de corpo estendido na cidade
e a vida pesada exibe-se nas ruas nas feridas da muralha.
digo-me no tempo sou mundo dentro das veias na espuma
tenho os mares o sangue os caudais as vibrações sombrias.
sou na terra os pés uma taça de silêncio estas raízes assim
fincadas na nudez da pele a fonte de tudo vertical no fogo.

2016-02-12

[¿erótica?]


[¿erótica?]
frutos de morder os lábios
teclas de tocar os dedos
sopro de dizer a língua
arrepio de sentir a pele
fogo de queimar os dias
letras de ser o AMOR
tempo de ser no corpo
líquidos nos olhos o vento
nesse olhar que é tormento.


martinus dixit.

2016-02-11

Vergílio Ferreira: no início era a morte


Vergílio Ferreira: no início era a morte

O tema da morte é um “topos” literário flagrante, com ele se encontrando, desde há muito, o leitor noturno e também diurno. Cruza todas as literaturas e, claro, é um lugar bem identificável na literatura portuguesa. Urbano Tavares Rodrigues, notável ficcionista e ensaísta de longo fôlego, deixou-nos mesmo um livro de ensaios intitulado O tema da morte[1]. Anteriormente já o mesmo intelectual publicara o título O tema da morte na moderna poesia portuguesa (1958).
Mas ainda ainda mais do que Raul Brandão, é Vergílio Ferreira quem persistentemente deflagra o tema e o dissemina pela sua obra questionante. Desde o início do caminho, diga-se. Ora olhemos ainda para O caminho fica longe (1943) e veja-se como a mãe de Amélia  “morrera há muito tempo” (p. 33), deixando a filha como uma dor “que ficara a marcar-lhe todas as voltas da vida” (p. 34); como o pai “também lhe morrera” (p. 34), criando um “vazio que inutilizava a vida de Amélia” (p. 34); como morrem a mãe de Conceição, Luísa e Rodrigues.
Na janela da vida está a morte, esta morte no meio do caminho…

Viseu, 10 de fevereiro de 2016
Martim de Gouveia e Sousa



[1] Cf. Urbano Tavares Rodrigues, O tema da morte (Ensaios), Lisboa, Cronos, 1966.

2016-02-03

Imagens do desporto em Vergílio Ferreira: «O caminho fica longe»


Imagens do desporto em Vergílio Ferreira: O caminho fica longe

Escritor forte no cânone ocidental, Vergílio Ferreira dissemina pelas suas obras um saber múltiplo e enciclopédico. Ao jeito de Shakespeare, diga-se. E, de facto, ao olharmos a criação vergiliana, poucos domínios do saber terão ficado intocados pelo mestre do romance problematizante.
Ainda que o primeiro romance dado a lume enferme de uma «hesitação fundamental»[1], não deixa também de ser verdade que tais primícias são já um abundante exemplo do que atrás dissemos. Pense-se no desporto, por exemplo, e veja-se como o futebol é um dos ambientes coimbrãos que o nosso escritor estende na sua ainda hesitante tela:

Do campo de futebol sobe um bruá…á como de um mar e, à beira de Luísa, passam dois garotos que se desengonçam na caminhada, esfregando as mãos:
- Eh! pá! Hoje é que vai ser. São nove a zero, como ginjas…
Vaz vem apressado. Alcança Luísa:
- Passou bem?
- Como está você? Então? Ao futebol, claro…
- Pois… Não pode perder-se um desafio com o Benfica…
No campo estralejam palmas.
- Oh! Já estão a entrar em campo. Desculpe. Até logo!
- Vá lá, vá lá ao seu futebol. (p. 167)

E assim o futebol irrompe na primeira obra de Vergílio Ferreira, trazendo-nos, em simultâneo, uma personagem de nome Vaz, que a todos massacrava durante as refeições, «com lições demoradas» (p. 173) sobre esse desporto que deve ser também exercício de liberdade e construção.

Viseu, 3 de fevereiro de 2016
Martim de Gouveia e Sousa



[1] Vergílio Ferreira, Do mundo original (Ensaios), Coimbra, Vértice, 1957, p. 11. 

2016-02-01

Aprender com Vergílio Ferreira - UM


«Não se ensina a entender poesia como se não ensina a ser poeta. Ninguém ensina ninguém a ter os olhos pretos ou azuis.» (Promessa, Lisboa, Quetzal, 2010 [1947], p. 134.)