2015-12-23

[natal por fazer]

[natal por fazer]

não há natal nas mãos
nem calor nas veias
antes um mar confuso
de baixas prisões
onde se dita velho fado
de matar a vida.

nas mãos não há natal
que possa render-se
às manhas da opressão
que sobre fracos cai
delindo o sonho
e a luz de cada dia.

faz o natal com as tuas mãos

e levanta os olhos nesse fogo.

2015-12-16

Luandino & Aquilino


Luandino & Aquilino

Depois de ter pensado nisso, nada melhor do que escrevê-lo. É ou não verdade que quando, por exemplo (mas esta exemplificatio é muito importante), lemos O Malhadinhas, logo pensamos nas estórias de Guimarães Rosa e Luandino Vieira? E tal linha identitária não se restringe apenas à ambiência, antes a toda uma estrutura criativa que faz Rosa e o seu Grande Sertão um intertexto de Aquilino, o mesmo se passando com Luandino, que aquilinianou.
Vamos então à confidência do escritor angolano que escrevia e como poucos escreve. Inscrever em obra que o tempo assinalou frases como «A chuva saiu duas vezes nessa manhã.»[1] ou «Ri um riso triste, gasto, rouco do tabaco das cigarrilhas fumadas para dentro.»[2] é abandonar a literatice e entrar, rapidamente, na cidadela da literatura. Dobra, portanto, o valor da nota que Luandino apõe no seu diário, com data de 16-7[-1967]:
«Para o pai, no dia dos anos, o «Malhadinhas» do Aquilino – faz-me lembrar o que ele me contava do avô Balhão.»[3]
Luandino admite a influência, as múltiplas influências. E nem dizer ‘do’ é dizer ‘de’. Mas, afinal, quem não aquiliniana?
Viseu, 15 de dezembro de 2015
Martim de Gouveia e Sousa



[1] José Luandino Vieira, Luuanda, Belo Horizonte, Editora e Distribuidora «Eros», Ltda., 1965, p. 15.
[2] Id., ibid., p. 28.
[3] Id., Papéis da prisão, diário, correspondência (1962-1971), Alfragide, Caminho, 2015, p. 807. Organização Maria Calafate Ribeiro, Mónica V. Silva, Roberto Vecchi.

2015-12-14

Daniel Faria: ao contrário do ódio


Sob o influxo de outra grande voz, no caso Dylan Thomas, Daniel Faria, partindo do ocasional dístico do poeta galês («Não entres docilmente na noite serena / Odeia, odeia a luz que começa a morrer.»), deixa-nos um pensamento arrasador, belíssimo e definitivo:

«Eu não entro docilmente na noite serena, mas não odeio a luz que começa a morrer. O ódio tem a força de quem se despedaça. Eu tenho o sofrimento daquilo que se desfaz.» (Daniel Faria, O livro do Joaquim, Vila Nova de Famalicão, quasi edições, 2007, p. 78.)

Faria espalha-se assim pelo Olimpo, plantando em todos um esplendoroso e sofrido natal. Fora do coração, o ódio despedaça-se no vazio. A poesia ensina, ensina sempre. Esta, esta poesia. 

2015-12-13

A dignidade em José Luandino Vieira


Arvorando-se em centro da representação, tem feito narrativa o facto de alguns actores da causa pública lamentarem prisões e investigações a políticos e seus próximos. Chega-se ao cúmulo, até, de serem as próprias vítimas (mas, sê-lo-ão?) a estabeleceram cotejos impossíveis. Afinal, há por aí muitos mandelas, cunhais, luandinos, soares... e tudo, afinal, não passa de delito de opinião, ideologia e perseguição política.
Olhando o desassombro, apetece rasurar, obliterar e deslembrar a inutilidade. Lembro, no entanto, Luandino e a sua dignidade de prisioneiro e de escritor:

«27-03-63  São 6h, fecharam a  porta. Tenho o papel branco à minha frente. Terei coragem?... Vou tentar começar o conto.» (Papéis da prisão Apontamentos, diário, correspondência [1962-1971], Alfragide, Caminho, 2015, p. 219 )

Assim um homem que é grande. Digno o humano, imenso o escritor. Poucos assim, muito poucos assim.

2015-12-12

A amizade de Daniel Faria


A grande literatura ensina sempre. Não necessitando de colagens, seguidismos e oportunidades, os textos fundos afundam-se, gravando-se na pele. E pelo tacto irrompem, clamando o tempo da desvelação. Da amizade aos raros vocábulos vindo, da amizade tratam, como o anunciam os líricos gregos e o tratadistas romanos, nomeadamente Cícero. Contra o frenesim da citação sem lugar, diga-se que a amizade deve ter lugar, é mesmo o lugar, sendo infensa a vulgarizações sem casa. Abomino livros de citações sem lugar. Adoro as boas citações. A propósito, que dizem desta (?), sobre a amizade:

«Na amizade, muitas vezes, a distância é o lugar mais próximo e de maior proximidade, isto é, onde a presença do outro de tão inteira já não pode ser medida. Sendo um lugar cheio de saudade, esse é também um lugar feliz, porque aí sem cessar se regressa e avista.» (Daniel Faria, O livro do Joaquim, Vila Nova de Famalicão, quasi edições, 2007, pp. 76-77).

Saudade, saudade disso - desse lugar... 
  

2015-12-07

A poesia segundo Daniel Faria


A poesia não pode e não deve, porque ela é pestanejamento e univocalidade. Ir no ritmo, ir na história, ir na folia é, afinal, não ser poesia, não ser originalidade radical. Um poeta corta a raiz e constrói. Sub-sobre o tempo o poema abisma-se. Sendo, contempla-se no que foi - sabe a historicidade, não o sendo, antes sendo-se em espanto. Assim diz o iluminante Daniel Faria, em texto datado do Porto, 15 de julho de 1993:

«Pelo que ficou dito se conclui que a poesia é surpresa. Esse é o seu modo de ter profundidade e harmonia.» (Livro do Joaquim, Vila Nova de Famalicão, 2007, p. 72).

Descobrir, ver primeiro, surpreender, eis a essência poética, eis o destino de Daniel Faria...


2015-12-06

O rigor de Luandino Vieira



Um escritor que o é exemplifica-se, não temendo a diferença, a superioridade igual. Na linhagem, nesse antigamente presente, o escritor enlaça-se em Joyce e abraça Guimarães Rosa. Juntos são indivíduos, genialidades afins na diferença e na indesmentível integridade.
José Luandino Vieira é um escritor, mesmo quando não escreve. Di-lo o que escreveu e o que não escreveu. O rigoroso silêncio exemplifica ainda a sua mestria - o silêncio, esse motivo definidor e diferenciador. Luandino não é festas e néon, comércio e prémios, comendas e literatice - ele é literatura e não usura disso.
E tudo isto a propósito dos fulgurantes Papéis da prisão (Apontamentos, diário, correspondência) [1962-1971] (Alfragide, Editorial Caminho, 2015) e de ditos como o seguinte:

«Queria escrever o conto, mas estou com o medo habitual do papel branco...» (p. 96)

Luandino, mestre que o é...

2015-12-03

ISTO: RAMALHO


ISTO: RAMALHO

Em tom de festa, a literatura não é isso – festa. A melhor, do silêncio vindo, não resiste muitas vezes à usura, ao galanteio fácil, ao chiste e ao piropo de prebenda. Porque não usados, os textos de muitos autores fortes vão ficando encostados, esquecidos, desalinhados. E ainda bem! Antes isso que um uso irregular e escassamente comemorativo. A apropriação desalinhada de pequenos ditos, fulgurantes sentenças que sejam, não ajuda o escritor, maltrata a literatura. Que, diga-se, felizmente não tem costas e logo rechaça os arreganhos.
Vem tudo isto a propósito de Ramalho Ortigão (1836-1915), estranhamente deslembrado em ano de centenário. Dizê-lo um grande escritor é obrigação, claro. Lembro, por exemplo, o garboso livro de «juventude» Em Pariz (Porto, Typographia Lusitana, 1868), que tanto nos ensina sobre a flânerie e o bom gosto. O livro em causa cruza a crónica com a ficção, o real com a transmigração, oferecendo-nos pérolas inúmeras. Por exemplo, sobre a necessidade de se ser profundamente original, isto: «Hoje em dia um viajante que se não apeie de um balão com notícias da lua, precisa de nos ser muito sympathico para o não termos por um semsaborão quando vier contar o que viu.» (p. 5) Ou, por exemplo, a valorização e estatuição canónica de nomes tão fortemente nacionais e esquecidos (Ramalho vai falando de Bernardes, Herculano, Garrett…), lamentavelmente ditos mestres e quase nada lidos: «… nós fallamos uma língua, que tem sido cultivada por vários homens de genio, entre os quaes se cita um padre chamado Antonio Vieira, cuja forma e geito litterario estão sendo agora imitados e remoçados nos escriptos do snr. Victor Hugo.» (p. 21) Ou o culto dos lusófilos, como acontece com Ferdinand Denis, que habitava «uma pequena casa anexa á esplendida biblioteca de Sainte-Geneviève, na Place du Panthéon», onde o nosso Ramalho aquecia a mocidade «ao calor do seu espírito» (p. 69). E o que não perpassa aqui de amor à cultura e ao saber! Lembre-se, por fim, isto: «Um homem que saiba comer reconheceu-se afinal que era tão raro e tão precioso como um homem que saiba pensar.» (p. 82) Que grande filosofia a de Ortigão!...
Há nesta escrita e nesta ambiência, em genética de um século, uma linhagem que é a de Garrett, Ramalho, Eça e Aquilino. Quem pode, pois, contar o que não viu e muito menos leu?

Viseu, 3 de dezembro de 2015

Martim de Gouveia e Sousa

2015-12-01

Sobre «O livro do Joaquim» de Daniel Faria


1. Quase nunca um livro é assim tão minudente, tão tenso, tão libertador. Sobre a existência dizendo, este golpe poético diarístico é ainda uma tábua de salvação - preso à dor, ao sofrimento, aos sentimentos mais quotidianos e infinitos, eis um fundo e tocante manual de aprendizagem.

2. Aqui não há gangas, excessos, gorduras. Só palavras sílaba a sílaba significantes, significando o rigor da linguagem, o rumor agudo da mensagem, a escorrência vital da dor. Sem isto, não há isto.

3. Apontando o perigo desde o pórtico («Joaquim // no fim deste livro / talvez seja o teu nome a única / palavra que deixemos por riscar»), é de vida que se fala, desse perigo, como o diria um também fulgurante Guimarães Rosa. 

4. Este livro mastiga-se: «Não acredito que cada um tenha o seu lugar. Acredito que cada um é um lugar para os outros.» Este livro não pode ser apenas do Joaquim, pois não?

2015-11-19

Inscrituras de AlbuQ por Moimenta da Beira - mais Aquilino...


INSCREVA-SE UM CERTO MODO DE USAR: Aquilino por Albuq [BULA 2]

Convocando-nos para um mundo transmigrado e aberto a múltiplas apropriações, o extenso trabalho de Pedro Albuquerque sobre a obra de Aquilino Ribeiro é, indubitavelmente, um dos mais consistentes fenómenos de dialogismo artístico entre um escritor e um artista plástico. Sobre Aquilino e o seu mundo, o artista viseense inscreveu no devir temporal cerca de duas centenas de trabalhos. Um quinto deles formará o núcleo da exposição que se deixa em proposta, sabendo nós que esta viagem é um regresso à nossa condição, à condição do que somos. Olhar estes trabalhos, entrecruzá-los com a facúndia aquiliniana, é também privar com um espaço de localização que é nosso e importa conservar, interpretar e recriar. São lugares fundos aqueles que se insinuam vindos da mestria de Aquilino até às incisões criativas de Pedro Albuquerque – este é um espaço de verdade e ilusão.
Já o disse, mas repito-o: É esta exposição um filme de sangue e o respirar de uma casa comum- um regresso à condição, como diria Aquilino Ribeiro. Os quatro andamentos aqui revelados desvelam uma ficha antropológica, uma etologia, uma força erótica e um movimento, que, existindo nesse lugar de nome Aquilino que Óscar Lopes tão bem assinalou, são também clara conquista expressiva de AlbuQ. Os trabalhos plásticos aqui tornados presentes, sendo mera possibilidade mostrativa de universo cinco vezes mais lato, não são univocais, líticos, fechados. Antes criações dinâmicas, vindas de lugares aquilinianos, aparentemente identificáveis, mas logo totalizadoras e dialogantes com a enciclopédia de cada um, com as específicas gramáticas do mundo de cada indivíduo. Todos estamos implicados neste universo aparentemente desaparecido mas ressonante no sangue, como se todos estivéssemos dentro de uma mesma casa.
Possam pois os espectadores agir emancipadamente, sem quaisquer linhas virtuosas de leitura, para uma interação que a todos convém. Aquilino é brilho, vitalismo e movimento transbordante, mesmo que pontualmente a vida levasse o Mestre a uma certa descrença – lembro, por exemplo, aquele ano de 1920 em que Aquilino, em carta a Álvaro Pinto[1], confidencia: «A vida aqui tornou-se insuportável; insuportável para mim e mormente para mim vilipendiado como me sinto. […] A literaturasinha nacional cada vez mais trôpega, de resto como tudo. Isto tornou-se um inferno. V. é feliz em estar longe. A única solução dum homem honesto e digno é fugir». Nunca esta frustração, de sabor tão moderno, povoou, no entanto, a obra literária de Aquilino e, em propriedade, o que sempre ressuma é uma indesmentível força vital.
Força essa que, diga-se, uma outra «central de energia» de nome Albuq, qual cadáver adiado procriando, retomou e para nós baralhou sob o preceito da ambiguidade produtiva. Aliás, estas albuquianas «inscrituras» servem para nos descobrirmos nas incisões que repetem, como no poema de valter hugo mãe, uma incrível relação:
aos traços
traço a traço
envelheci
tenho os desenhos
servem para alcançar o
tempo do mundo
incrível idade do artista.[2]

Assim Pedro Albuquerque no tempo do mundo, dando-se, incrivelmente dando-se! Friso, e já o tinha dito a um bom par de amigos, dormindo com deus e um navio na língua, para repetir uma belíssima intitulação de Eduardo White[3], Pedro Albuquerque, o velho e defunto AlbuQ procriante, é assim um cineasta[4] da pintura, um escrevivente do movimento que é a vida, indo sempre mais além.
Expodemo, Moimenta da Beira, 25 de setembro de 2015
Martim de Gouveia e Sousa



[1] Carta de Aquilino Ribeiro a Álvaro Pinto,
[2] valter hugo mãe, egon schiele, auto-retrato de dupla encarnação, Porto, Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, 1999, p. 23.
[3] Refiro-me a Eduardo White, Dormir com deus  e um navio na língua, Fafe, Labirinto, 2001.
[4] Não me parece descabido aplicar a Pedro Albuquerque essa característica única de fixar o movimento e todas as particularidades cinéticas, um tanto ao jeito do que Eisenstein fez para El Greco. Cf. S. M. Eisenstein, El Greco, cineasta, Barcelona, )intermedio(, 2014,

2015-11-10

Cunhal escritor no dia do seu nascimento

Álvaro Cunhal por João Abel Manta (2008)

Um escritor não nasce logo, não cessa de nascer. Maria Alzira Seixou guindou, desde há anos, Manuel Tiago a uma posição bem acima de meritória; Urbano Tavares Rodrigues, por exemplo, dedicou-lhe mesmo um volume de ensaios, escrutinando nele características apaixonantes de excelência literária.Não acabando de nascer, neste dia profundamente simbólica para o sonho e a mudança, é Manuel Tiago, e o mesmo é dizer Álvaro Cunhal, um profundo escritor vindo, como o diria o subtilíssimo Urbano Tavares Rodrigues, «da grande seara da dignidade conquistada».
Lembra o evento uma outra deriva da doxa literária - a de todos quererem ser muito escritores, muito amigos até da literatura, laborando em coutadas de interesses pouco límpidos, muito opacos. Dizia António Franco Alexandre, imenso poeta nascido em Viseu, que com muita dificuldade se via escritor, se dizia escritor. Ainda assim, quantos escritores tão mais escritores que Manuel Tiago? Que criadores literários tão adentrados na beleza feminina?

2015-10-19

[cidade dentro]

[cidade dentro]

debruço-me da varanda de mim
 és uma angústia antiga cidade
donde todas as linhas partem
desassossegadamente até ti.

clandestinas no poema as vias
são ruas diretas até essa estação.

fora do lugar arrumas-me aí
na esquina quente da história
onde outrora de pedra as bocas
foram montanhas nessas águas.

ouve a última canção, amiga,
sorve o ar da janela a funda
beleza dos álamos o encanto
dos dedos caminhando fundo
a tensão branca dos corpos
a real cartografia no terraço
onde ser rio é ir ao fundo…

ouve esta música o sol na mesa.

2015-10-16

[tempo inverno]

[tempo inverno]

contra a janela o vento o inverno cai
dizendo que as estações são lugares
e as pontas dos dedos comboios indo
corpo dentro por veredas sombrias.
apeado no coração do joelho chegado
um rubor de tédio planta-se no chão
como um fruto em quintal balança
estende-se rumorosamente na pele
inversa. ainda há espaço em mim?
como teia o tempo tece lento e afunda.

2015-10-06

[moradas]

[moradas]

são pequenos passos aqueles que dás
breves incisões no tempo e no amor
talvez essas moradas devenham luz
talvez o caminho na raiz dos pulsos.

2015-10-02

É A HORA DE PENSAR!

É A HORA DE PENSAR!

Olhando para o País, não se vê, em terra de milagres, «milagre» algum. Aliás, é tudo menos: menos gente, menos competitividade, menos saúde, menos educação, menos salário, menos cultura, menos alegria, menos amanhã… Aqui chegados, talvez as palavras de Orlando Raimundo ajudem a esclarecer uma miragem que nos querem impingir. Cito: «O “milagre” salazarista foi resultado de um enorme aumento de impostos, cortes nas despesas de saúde e educação e redução dos salários da função pública.»
Este eco lembra o nosso tempo, a nossa hora. Espantar-me-á, talvez, é o facto de alguma juventude, da infelizmente pouca que por cá foi ficando depois de execrando banimento, continue a seguir quem tanto mal lhe tem feito. É a hora de ser consequente: quanto dinheiro a mais ou a menos no bolso? quanta educação e quanta saúde? que luminosa perspetiva de futuro? Não, não houve milagre que não seja miragem.

Na hora que vai chegando, haja memória, haja vontade de perceber, haja vontade de cortar com aqueles que só se lembram de nós em tempo de eleições, como se a vida pudesse assim ser jogada entre foguetes e coisa nenhuma! Decide, decide por ti…

2015-09-29

Na abertura da exposição «Inscrituras», em 16 de maio de 2015, no Museu Nacional de Grão Vasco: Aquilino visto por AlbuQ

POSOLOGIA [BULA]: MODO DE USAR

«Quando a peste cerca a comunidade, a confusão e o salve-se quem puder entram na ordem do dia. Mas não só. As pessoas atropelam-se, as pessoas morrem, as pessoas tentam fugir (e algumas, efetivamente, fogem). Sobreviver ou não sobreviver, eis a questão. Mas não só – repetimos. O ser humano é isto e é aquilo mas é também, às vezes, um ser obcecado – pela criação, por exemplo. Pela meditação.»[1]
Meditação, dizia. E por aí sigo. Olhando estas «inscrituras» de AlbuQ, tal como acontece no poema de Luís Miguel Nava, apetece dizer:
Estou em Viseu, o tempo dá de súbito um salto para trás.
É um filme muito antigo, entre cujas imagens, devolvidas assim à realidade, me movo hipnoticamente, em cada uma das coisas que me cercam pressentindo o sangue de que, dentro de mim, durante todos estes anos se nutriram. Cada contorno aqui é um sublinhado.[2]

Ou, então, apetece chamar para esta mostração um outro grande nome da poesia portuguesa, António Franco Alexandre, que, evocando a sua condição, diz:

vejo a pequena terra em que nasci
o sossego das grandes chuvas desabando no pátio e o respirar da casa
o rosto de minha mãe[3]

É, pois, esta exposição um filme de sangue e o respirar de uma casa comum. Ou um regresso à condição, como diria Aquilino Ribeiro. Os quatro andamentos aqui revelados desvelam uma ficha antropológica, uma etologia, uma força erótica e um movimento, que, existindo nesse lugar de nome Aquilino que Óscar Lopes tão bem assinalou, são também clara conquista expressiva de AlbuQ. Os trabalhos plásticos aqui tornados presentes, sendo mera possibilidade mostrativa de universo cinco vezes mais lato, não são univocais, líticos, fechados. Antes criações dinâmicas, vindas de lugares aquilinianos, aparentemente identificáveis, mas logo totalizadoras e dialogantes com a enciclopédia de cada um, com as específicas gramáticas do mundo de cada indivíduo. Todos estamos implicados neste universo aparentemente desaparecido e ressonante na corrente sanguínea, como se todos dentro de uma mesma casa.

Neste regresso à condição que celebramos hoje, fica um desejo e uma posologia: que este diálogo persistente e consistente entre dois nomes – um dos mais alargados, sem dúvida, da cultura portuguesa – convoque os espectadores emancipadamente, sem quaisquer linhas virtuosas de leitura, para uma interação que a todos convém. Aquilino é brilho, vitalismo e movimento transbordante. E esse é, felizmente, um filme que aqui claramente vemos e incorporamos.

Criando, meditando, dizia há pouco. Assim o vai fazendo o nosso artista. Sempre.

Viseu, 16 de maio de 2015
Martim de Gouveia e Sousa 





[1] Eugénio Lisboa, Crónica dos anos da peste-I.
[2] Luís Miguel Nava, O céu sob as entranhas.
[3] António Franco Alexandre, Oásis.

2015-09-13

Irradiante Aquilino


Irradiante Aquilino

Falar de um nome que é pelo menos meio século de literatura nunca é fácil. Difícil ainda é falar de um nome que é um lugar, como o assinalou Óscar Lopes, e que sendo-o o é fortemente alcandorado no pequeno tugúrio criativo que foi a sua banca de oficina na Soutosa. A narrativa ficcional portuguesa conta-se num ápice: Herculano, Garrett, Camilo, Eça, Brandão, Pessoa, Aquilino, Vergílio, Agustina, Cardoso Pires, Saramago, Gonçalo Tavares. Nas adjacências ainda fortes, um Teixeira-Gomes, um Nemésio, um Mário de Carvalho. Mas na linhagem funda como central de energia até Aquilino só há Garrett, Camilo e o fulgurante Eça. Depois deste, o monumento é indubitavelmente Aquilino, pesem o espanto brandoniano e a fragmentação de Pessoa-Vicente Guedes-Bernardo Soares.
Mas como foi possível Aquilino chegar aqui? Olhando à perquirição de Armando Leça «Através da Beira-Douro» eis que o viageiro desencanta na Soutosa uma bonita mas rude quadra:
Quando eu te amei,
mais valia amar um burro,
andava a cavalo nele,
nunca eu perdia tudo.[1]

E foi principalmente aí, depois do aprendizado lisboeta e parisiense[2], que o escritor veio a ser aquilo que queria ser: escritor. Olhando-se, vendo-se na pequena-grande circunstância, escrevendo diferente, Aquilino veio a ser um outro escritor, um mais fundo escritor. Contemplando no sangue pequenas e grandes rechãs, silvas, ortigas, favacas e demais herbáceas, as uvas multicolores e viçosos legumes, os lameiros e as tourinhas nos cibadoiros, a frescura que os gados espontam nos sargaços, nas urzes e nos tomelos, os campestres fálgaros e os gritos dos gaios, a dureza das fragas, a romaria da Lapa e a festa de Santo Amaro, enfim, a vida plena, pôde o escritor abarcar o mundo, ser o mundo. Aliás, projetando-se na obra como os maiores o fazem, diga-se que Aquilino Ribeiro revela-se na marca criativa um «sofredor» do complexo da desvelação, indicando caminhos, mostrando lugares. Por exemplo, ao referir-se à Beira e à etologia de Adriano Valadares, o narrador de Maria Benigna (1933), não hesita: «Tudo aquilo, tempestades de penedos suspensos de morros e encostas, plainos desolados em que cresce uma rabugem de mato e a que nem os rebanhos de reses magras e pequeninas nem o renovo da primavera conseguem animar, pinheirais vergados para nascente como hordas em marcha, solo sáfaro e condenado a dar fruto, terra onde os medos andam à solta e as ruínas guerreiras e monásticas ensombram a cada passo os horizontes, brutalidade e melancolia, rijeza e desespero, perspetivas abstratas e um sentido da vida muito concreto, eis a Beira Alta, eis o plasma medonho e admirável de que ele é feito.»[3]
Deste plasma sendo, desta projeção oracular de um grande caminho nascido de vereda geográfica,  eis que Aquilino, irradiando sempre, soube universalizar um território que, sendo inscrição geodésica, é, antes de tudo, funda pegada literária e infungível espaço de diferença. Ao dizer «A minha obra sou eu próprio», Aquilino inscreve uma “mesmidade” produtiva e única.
Assim este irradiante Aquilino, que, nascendo, não cessa de nascer…

Viseu, 13 de setembro de 2015
Martim de Gouveia e Sousa




[1] Armando Leça, «Através da Beira-Douro»-III, in Boletim da Casa Regional Beira-Douro, Ano III, nº 3, março de 1954, p. 86.
[2] Jorge Reis, «Paris, berço da língua de Aquilino?...», in Revista de Cultura e Pensamento Boca do Inferno, nº 2, Cascais, Câmara Municipal - Pelouro da Cultura, pp. 174-195.
[3] Aquilino Ribeiro, Maria Benigna, Lisboa, Livraria Bertrand, 1933, p. 231.

2015-08-31

[é nas mãos]

[é nas mãos]

era um quarto nas mãos
a cama na palma suave
e a fonte solícita nela.

doce a manhã estendia
os braços e as pernas
rebentando na língua.

em galope o tato a pele
caminhavam nos olhos
eram toda esta sombra.

nesta rua flui o desejo
janela e estação do corpo
nesta linha que me arde.

2015-08-24

[abismos]

[abismos]

uma súbita onda vem à montanha
crescendo como rebentação  do vale
sem anúncio do fundo ao alto o gume
atravessa historicamente as vísceras
cortando nos canais as pontes os nós.

gélidos os líquidos confrontam os ventos
e alojam-se no sangue e noutros mapas
que a anatomia não acha explicativos.

da casa última ágil a água sobe à janela
vertendo-se na mesa assim se escrevendo
no puído da folha na corrupção do dia.


de novo uma derradeira vaga o abismo de tudo.

2015-08-19

[bolor]

[bolor]

até ao absinto as ruas eram lisas
e nem os morcegos dos becos
adentrados na escuridão sabiam
que existiam caminhos negros.
no pulso na torre um relógio
vital ia decantando o tempo
contra as chuvas nas montras
o azebre das fábricas a usura
disso um rito o transido nos lábios
as imagens vindo à pele o sangue
fundo do poço a desfilada do corpo.
torcicolada a pele era um nítido inverno.

2015-08-07

[QUASE DIA]

[QUASE DIA]

era um longo canal que levava à minha cidade
percorria-o uma ténue luz do céu espelhada
como se um caminho fosse direção divina.
aos pés uma armadilha desafiava os calcanhares
e desse contacto restava o azebre nos lábios
o rigor ácido de fim de noite última jornada.
só então um breve pássaro rompia nos olhos
inundando de vida o rumor do dia que chegava
o geodésico sinal dos estilhaços o lugar de ti.

2015-08-04

[REPRESA] olho dentro da chuva a água presa ao ralo borbulhando fundo como corpo no abismo. no visor do telemóvel leio um grito o absurdo de olhar vários números que não mais tocarão. é esse o rol líquido que se afunda aos pés essa fuga para sempre para dentro da terra. quanta dor em nós quanto de vida assim perdida na memória e nesta chuva estival!

[REPRESA]

olho dentro da chuva
a água presa ao ralo
borbulhando fundo
como corpo no abismo.

no visor do telemóvel
leio um grito o absurdo
de olhar vários números
que não mais tocarão.

é esse o rol líquido
que se afunda aos pés
essa fuga para sempre
para dentro da terra.

quanta dor em nós
quanto de vida assim
perdida na memória
e nesta chuva estival!

2015-08-03

[uma ponte o vento]

[uma ponte o vento]

e o vento uma ponte
sob a bicicleta indo
pelo mundo aberto.
nem o sono antigo
a comissura do tempo
roendo dentro de mim.
apenas um corpo alado
no ar de pescoço aberto
rodando no friso pulmonar.
é nesse lugar a morada
aí no tempo roendo a casa
no fosso fundo da língua.

2015-07-31

[QUASE CELAN]

[QUASE CELAN]

ao dizeres um nome
tens o bem e o mal
nada mais podendo
contra esse abismo.
afunda-te no silêncio
ouve isto – o niilema.

2015-07-27

[DIZ-ME]

[DIZ-ME]

abraçados pelo fim da noite
beijávamos  becos esquinas
em todos os ângulos a pele
amaciava a pólvora e a sede
e de ti uma bandeira quente
comigo cavalgava pelos céus.
que silêncio este que te enche
que inaudível voz nesta praça
que rebentação inteira na noite?

2015-07-13

EXPRESSAMENTE (TRÊS)

EXPRESSAMENTE (TRÊS)

Dizem que o nosso governo não quer protagonismos. E seria positivo que assim fosse! Por exemplo, o primeiro-ministro «não quer» devassa sobre a sua vida privada, familiar e laboral. E muito bem, se não houver contenda com o interesse nosso, público. Ser afetado por desmemória face a atos anteriores e não saber calar sobre os outros, os gregos, e.g., é aspeto que muito diz sobre uma psicologia moral. Opinar sobre os gregos, que foram chamados a opinar, e muito calar sobre o estado da nação portuguesa, cujos habitantes foram tratados como imbecis, é uma janela fechada que vai lembrando outros tempos, os mesmos modos. Bem clama Adolfo Luxúria Canibal que uns certos ossos regressaram ao Palácio de S. Bento. Vê-se?

EXPRESSAMENTE (DOIS)

EXPRESSAMENTE (DOIS)

Dizem por aí que em cerca de um mês se esgotaram as cinquenta mil pulseiras do «Programa Estou Aqui!» da PSP, estando já em produção mais quarenta e cinco mil. É uma medida louvável, tratando-se de uma ação que permite a localização de crianças perdidas. Um outro drama me vem à memória – o do abandono forçado do país a que jovens e não só têm sido sujeitos. Um similar «Programa Não Estou Aqui» monitorizaria uma tragédia que, nos últimos tempos, afastou do país meio milhão de portugueses, muitos deles com elevada formação. Diz-se que a maior parte não voltará a uma má pátria que os baniu. E é fácil perceber a razão.

2015-07-12

EXPRESSAMENTE (UM)

EXPRESSAMENTE (UM)


Portas pede contenção e, desabridamente, uns outros querem umas presidenciais avant la lettre. Foco, ponto de vista, visão, é o que se pede. Enquanto um, agora implicado, silencia; outro, outrora implicado, mostra a sua volúpia. O caminho, afinal, não é de nenhum deles. Mas quem não vê?

2015-06-30

[de súbito a morte]

[de súbito a morte]

esse incêndio que meus olhos viram nos teus, amigo,
não poderia  ser tal rio negro de morte que urgente
te arrebatou de nós para longes e muros escuros…
antes um modo de encanto um clarão sorridente
tomando-nos a mão e não uma rebentação de cal.
olhos que escreviam rumos rotas geodésicas vias
não poderiam ser tais barcos de soturnos líquidos.
nos vidros nestes olhos o inverno rompe o calor
devora a estação quente e arde dentro de mim.

[poema para J. L. I. V., de nós afastado…]

2015-06-19

2015-06-18

[do sol]

[do sol]

ao canto um rosto anunciava-te
como ângulo histórico ou montra
e desse eco já perdido na corrente
uma luz original brilha desse longe.
como perder a face esta memória
que lustral desliza nesses dedos?
que fatal corrente assim desliza
que bebemos e é segredo quente?
tal o sopro que ouço e me é sol.

2015-06-14

[casa emergente]

[casa emergente]

era no centro da praça
esse lugar de encontro
entre mim e a pessoa
que comigo envelhecia
nas veredas e atalhos
da minha breve viagem
na galáxia da existência.

cheguei mudo saí calado
pela orla direita da fonte
onde uma água antológica
vertia os melhores líquidos
para um íntimo pátio de mim.

levava-nos daí  uma claridade
vinda dos interstícios da pele
onde minuciosa a persiana
tombava fechando os dias.

tudo se lia no livro nas pontes
insinuadas nas mãos nos dedos
lábeis cortando os fios de luz
que urgentes assim aconteciam.

como o tempo que de mim nisto
que febre adormecida na vocação
de abraçar os tetos os telhados altos?

2015-06-04

[mundividência]

[mundividência]

era nos dedos que te deitavas então
nesta pele sem pecado que ora trincas.
quanta azáfama na seda quanta sede
de cedo chegar e ocupar-te tudo isso?
contra a chuva tu explodias na estação
de sermos naquele lugar de sombra…
como o equilíbrio o corpo estua agora
neste mar de junho nesta boca coroada
e hora sobre hora o silêncio vem rendido.
às vertentes de mim chegas neste rota
neste tempo em que a aldeia é o mundo.

2015-06-03

[docilidade]

[docilidade]

dir-me-ás o que quiseres
e assim se fará esta estrada
onde os dedos são motores
e o coração o espelho do dia.

e mesmo as velhas memórias
de glória e outros caminhos
mais não serão agora que fel
e tempos idos em desalinho.

nesta casa onde sou e tu serás
se puderes não esqueças o som
que é silêncio e tantas coisas
até respiração e boca topográfica.

um rio assim é água doce canção.

2015-05-27

Aquilino


Aquilino. É o rio do tempo e o arco da interpretação. Imóvel, mas viva, uma forte ponte. De pedra, de uma mesma e fulgurante pedra. É a luz, o sol, a vida, o amor, a história, a voragem e uma escrita lavrante, única, lacerante mesmo. É um lugar e um nome. O de Aquilino, o nosso maior poeta. Vivo, vivíssimo hoje.  
[martim de gouveia e sousa, aos vinte e sete de maio de 2015].

2015-05-24

[desurbe]

[desurbe]

tudo estava nos muros da cidade
toda a poluição dos interstícios
os jogos malabares da politiquice
as mensagens surdas  dos jardins
a agulha cruciante no palato – o ar.

o ar fétido vindo daí dos muros
a podridão de tudo nas sombras
as antigas alamedas corrompidas
prostitutas oraculares dos affaires
da decadência funda deste tempo.

por que te moves, cobra, rasteira?
por que te mexes, cobra, festiva?
por que te vendes, cobra, prostituída?

2015-04-20

[gavetas]

[gavetas]

um comboio cruza a cidade o bolor disso
como um garboso cavalo e seu atrelado
os fuzis e as lâminas corrompem a pele
acidificando-a contra o café da sombra.

e nem o jornal encontra a data da raiz.

só o desejo dança nestas velhas gavetas.

2015-04-14

[musgo]

[musgo]

atravessas vazio os muros
e a água fria dos telhados
amanhece-te nos dedos.
sem código ou breve clave
rompeste a noite e o dia
ocremente foste pássaro
ave azul na arcadura de ti.
não serás anjo e nem fera
talvez um bom demónio
de coração trémulo acolá
liberto nesta vida de carris.
são seis da tarde neste musgo.

2015-03-26

[mundanal]

[mundanal]

é nos olhos que o mundo arde.

rápido como estação em fuga
do horizonte ao cerne ´prime
sobre o corpo e os ombros cai
tomando os estuários da pele
os vestígios fundos do tempo
todo o torcicolado dos lugares
por onde um dia foste amaste.

nessa morada ardente única
uma língua fendente é lâmina
que marca o espaço o incêndio
essas coxas de ti emergentes
como serpente dentro da praia.

fundente no abismo escorrego
durmo nesta paz química de ti
vinda onde desatento te beijo
na espuma que dos dias deploro.

é nos olhos que arde isto – e posso.

2015-03-22

[noturna]

[noturna]

é de noite que te vejo ao longe
junto a mim como olho à retina
e desse abismo vem um sorriso
o canto breve das mãos o fogo
aberto nos dentes como letras
prodigiosas invadindo o sangue.

é de noite que enches o silêncio.

2015-03-21

[mitologia cerce]

[mitologia cerce]

que mal haverá neste silêncio
se o que calo é só meu e teu
e o logro da palavra é dizê-la?
nada digas disto  nada sabes
dos abismos siderais e da pele.
talvez um dia longe romper
possas o que não deves dizer.
cala o fogo a festa dos dedos
os rumores fundos os mares.
recolhe os olhos e os sonhos
e devém sombra mitológica.

2015-03-19

[corporal]

[corporal]

entre a raiz e o corpo
o ar é uma península
e insinuação na pele.

das mãos aos lábios
os ângulos fundentes
pintam no horizonte
a rota mandibular.

mastigo quase mordo
o tempo plantado na mesa
em riste o breve seio
acaba comido – os dentes.

às vezes o corpo sempre é.

2015-03-18

[língua]

[língua]

é de água nas vértebras que falo
de uma fria pedra afiada – a língua.
contra  a carne flete agita os dedos
respira a humidade breve – a língua.
a língua escreve a língua nas veias
e sitiada rasga os dias as noites…

na língua o beijo que na língua cai.

2015-02-24

Ler Tolentino Mendonça


Ler Tolentino Mendonça

Ler Tolentino Mendonça obriga-nos a ler devagar, passe a marca e o chavão. Inconsútil, o texto Tolentino é paragem, descanso e pensamento. Não lavrando, por norma, em construções de grande fisicidade, isto é, de muitas páginas, o distinto escritor é profundidade e não comprimento. Sempre que dele me aproximo, estanco, acalmo e perco-me nos trilhos do pensamento. E parto sempre de breve frase ou de condensado hemistíquio.

«Qual é o sentido do trilho?», perguntava Peter. «Cada trilho conduz a mais do que um sentido», respondia, dizendo não saber, John Wolf. É desta fundura que se levanta o corte com o reducionismo e a deriva facilitista. E segue o grande diálogo de O estado do bosque (2013) que nos convida a um dia  tudo ser abandonado em detrimento dos caminhos do bosque, pois não há tecnologias superadoras. Quem não quer aprender, afinal?

2015-02-20


«Ministro da Marinha fosse eu, por exemplo, e não se me daria de trocar a farda, o chapéu de bicos, o espadim, a pasta, e até as próprias colónias se fossem minhas, por uma página, uma só que fosse, de prosa bem feita.» [Trindade Coelho, A minha «candidatura» por Mogadouro (Costumes políticos em Portugal), Lisboa, Typographia A. de Mendonça, 1901, p. X.]
Da lição fica a acrimónia contra todos os que, pouco sendo, tudo abraçam, como arautos e especialistas.