2014-10-09

Antitediário nacional com Murilo Mendes: felizmente, respira-se

Murilo Mendes, por Guignard

Antitediário nacional com Murilo Mendes: felizmente, respira-se

A Aquilino Ribeiro e João de Araújo Correia

Quando Murilo Mendes escreve as suas Janelas verdes expende, em simultâneo, no aparato textual e nas múltiplas alusões, um conjunto de afinidades eletivas literárias portuguesas que importa conservar e apreciar. É funda a apreciação de Luciana Stegagno Picchio. Defende a distinta lusófila que «Murilo Mendes sabia Portugal como poucos portugueses o conhecem: sabia-o com o hipocorrectismo do converso, do regressado»[1], acrescentando ainda, entre outras considerações, que a língua portuguesa que tinha recebido do Brasil, «língua fluente de Camões e de Vieira, de Gregório de Matos e de Machado de Assis, mantinha contudo o cheiro de manga do quintal de seus avós brasileiros»[2]. E isso, segundo penso, só pode ser positivo – deixemos, pois, que o cheiro da manga nos invada.
Os líquidos ressonantes de Murilo Mendes são vagas insurgentes, avessas a fórmulas e preconceitos. O texto sobre Guimarães, dedicado ao enormíssimo Vergílio Ferreira – e o paratexto assinala bem a enciclopédia de afetos do escritor de Minas Gerais! -, é um fabuloso caso de completude cultural e de desvelamento de profundos conhecimentos. Vê-se também isso no complexo das janelas que Murilo tão abundantemente entrevê pela cidade e nos cede em situação comunicativa. Não espantam, certamente, os nomes de Gil Vicente, Soror Mariana Alcoforado ou de Almeida Garrett – este, outro viciado do desvelamento -, o mesmo não se podendo dizer da presença de João de Araújo Correia, de incontestável valia e mais modesta fama, que aparece no excurso muriliano como amador de boa facas: « “(como faca de cozinha, não quero haja igual nem mesmo em Guimarães”, assim escreve João de Araújo Correia)»[3].
No capítulo sobre o Porto, dedicado a Óscar Lopes, convoca Murilo Mendes o dito do fortíssimo Teixeira Gomes que vê na Invicta «a cidade mais pitoresca do mundo». Vários nomes literários afluem: Cesário, Silva Pinto, Jaime Cortesão e António Nobre, a «nossa maior poetisa», apodo que o autor brasileiro repisa, para logo dizer: «Nem sempre»[4].
Dedicando capítulos e locais a autores fortes (Alberto de Serpa, Ruben A., Adolfo Casais Monteiro, José Gomes Ferreira, Urbano Tavares Rodrigues, António Gedeão e Natália Nunes, Pedro Tamen, David Mourão-Ferreira, Eugénio de Andrade, Orlando Costa, Luiza Neto Jorge, Salette Tavares, Ruy Cinatti, Carlos de Oliveira, António Ramos Rosa, Alberta de Lacerda, José Cardoso Pires, Agustina Bessa-Luís, Alexandre O’Neill, Herberto Helder, Isabel da Nóbrega e mais uns tantos, Murilo Mendes, de A a D do setor 1, desenrola toda uma literatura e desenha uma sugestiva linha canónica do século XX português. E no miolo há os Pessoas, os Anteros, os Eças, os Pascoaes, os Almadas, os Torgas, os Régios, os Junqueiros, as Florbelas, os Teixeira-Gomes, os Bocages e tantos outros bailando gostosamente sobre pormenores belíssimos noiváveis apenas com um amplo saber que só assiste aos devotados.
Namorantes, os capítulos do setor 2, de A a C, integram, por exemplo, Gil Vicente, Padre António Vieira, Mariana Alcoforado, Bocage, Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, Teixeira de Pascoaes, Miguel Torga, Antero de Quental, Camilo Pessanha, Mário de Sá-Carneiro, Florbela Espanca, Afonso Duarte e Fernando Pessoa, cabendo as dedicatórias aos próprios ou a personalidades de incontestável condição – e lembro José Augusto-França, Ruy Belo, Natália Correia, Bernardo Santareno, José Terra, Mário Cesariny de Vasconcelos…
Por estas janelas murilianas, vejo, claramente, toda uma literatura. «A casa está nele»[5], como diz Eucanaã Ferraz. Estará a literatura em nós?

Viseu, 9 de outubro de 2014
© Martim de Gouveia e Sousa



[1] Luciana Stegagno Picchio, «As Janelas verdes de Murilo Mendes», in Murilo Mendes, Janelas verdes, Vila Nova de Famalicão, edições quasi, 2003, p. 11.
[2] Id., ibid., p. 12.
[3] Murilo Mendes, Janelas verdes, Vila Nova de Famalicão, edições quasi, 2003, p. 17.
[4] Id., ibid., p. 23.
[5] Eucanaã Ferraz, «Em Portugal, com Murilo Mendes», in Murilo Mendes, Janelas verdes, Vila Nova de Famalicão, edições quasi, 2003, p. 216.

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