2014-09-05

URBANO TAVARES RODRIGUES e a ligação ao necessário em «Terra vermelha»


URBANO TAVARES RODRIGUES e a ligação ao necessário em «Terra vermelha»

Urbano Tavares Rodrigues é um dos mais importantes ficcionistas dos dois séculos portugueses que nos cabem e dizer isto é nada dizer – que poderão dizer as evidências? Começando na tautologia, vício de pensamento que é aqui admiração, muitos serão os cultores e detratores do autor, alguns até «sonâmbulos chupistas» de ocasião, para utilizar a expressão forjada pelo impagável Luiz Pacheco para tratar de um plágio polémico que envolveu dois escritores que também aprecio, nomeadamente o «plagiado».
Urbano Tavares Rodrigues, poeta até ao recorte mais íntimo, possui a elegância de um príncipe das letras que, em contínuo, respira arte e sentido. Dizê-lo criador de coisas belas é ainda não esquecer a rudeza de tudo, a poesia disso, o desespero lúcido do real. Vetorial, poética e económica, a prosa de Urbano é ágil como uma vertigem, tocante como uma vivência e comovedora como funda emoção.
«Terra vermelha» abre com uma dedicatória «À memória de Carlos Maria de Araújo» (1921-1962), poeta deslembrado e autor de dois livros. Trata-se de um iluminante paratexto que se projeta em emblema sobre toda a obra do autor de Bastardos do sol  e, obviamente, sobre a narrativa breve em análise. Sobre a lírica de Carlos Maria de Araújo, diz Jorge de Sena tratar-se de uma poesia «extremamente despojada e densa, de uma intensa severidade formal e de vigorosa emoção contida numa expressão lapidar, é bem a de um oficiante das trevas, dessas trevas que tão terrivelmente cobrem a vida e o mundo». E este diagnóstico poético aplica-se a Urbano integralmente.
Lapidar e direto, o incipit projeta-se na ambiência, desfibrando-se em agudas sensações: «À aproximação de Serpa a planície torna-se vermelha. É a argila que lhe dá essa cor forte de sangue de boi»[1]. Repiso agora os semas e vocábulos que abrem esta fictiva sinfonia: ‘planície vermelha’ e ‘cor forte de sangue de boi’. Tragédia abatendo sobre os homens, a gente esfalfou-se e «ficou sem vintém». E depois, logo ali, desde o início ficcional, uma substantiva admonição recobre a narrrativa: «Muitas dessas courelas que uma charrua de sonho e de raiva lavrava contra o destino foram engrossar os latifúndios» (loc. cit.). E o resultado de tal injustíssima destinação logo tinge a mancha tipográfica anunciando o desenlace do novelo quase sofocliano: «Houve seareiros que deram o nó de peito e se penduraram pelo pescoço da pernada de uma sobreira; outros amaltesaram-se, andam por aí com os cães, babando-se, os artelhos á mostra, mortos até pelos filhos, que deles se envergonham». E o pobre do Joaquim Trovoada, um dos melhores, sem dúvida, que não resistiu e «amandou uma trancada» no cabo da guarda.
Mas tudo mudará um dia, obrigatoriamente, assim o escreve esperançosamente o narrador, que, participante, lamenta que tanta gente por ali não tenha podido escolher uma outra vida: «E é muito provável que sim, que muitos deles se entenderiam hoje melhor do que eu com campos magnéticos e energias potenciais. Mas não puderam, não podem ainda escolher a sua vida; perderam-se para si próprios e para todos nós nestes feudos atrasados, refractários à indústria rural»[2]. E, no entanto, não existem desvios e ciladas, de facto, existentes, que coartem à personagem de primeira pessoa «uma lúcida esperança, uma esperança desconfiada, vigiada, mas firme»[3]. E uma consciência acerada de que o diassistema linguístico, isto é, a língua natural, não obstante os estropiamentos censórios nos inquéritos realizados, é fundante para o mundo: «- Mas o português é a língua através da qual tomo uma determinada consciência do mundo, a que está certa com a minha natureza mais profunda. […] Além disso, o meu nexo com esta gente – e isto é o principal – só se estabelece verdadeiramente através da nossa língua»[4].
No entanto, a dorsalidade e a exigência ética, meios para a manutenção da integridade, serão atacados pela própria vida que exige capacidade de assegurar a subsistência e difícil é ganhar, assim sendo, para as «exigências de homem só», quanto mais para uma vida a dois que a mulher amiga, afinal, assegura. E será de voz feminil, tão cara esta como todas as outras ao gentleman que Urbano Tavares Rodrigues foi – e é, permita-se! -, que se levantará o eco da lição do porvir:

- Um dia estes inquéritos, todos os inquéritos deste género que por aí houver nas gavetas, serão publicados na íntegra – diz a Lu – e então prestarão um serviço: darão a estes homens subevoluídos, subalimentados, esmagados por uma servidão ancestral, qualquer coisa de muito necessário: consciência de si próprios, da sua condição, dos seus direitos, do seu papel no mundo moderno.[5]  

Outro dissídio, porém, se incrusta em Cirilo – entre Lu e ele há agora aquela Georgina, de eco garrettiano, que entrou e na casa de ambos se instalou, jovenzinha alarmante e inconsciente - «e com esses peitos tão altos (maiores que os da Lu)»[6]!
Na viagem noturna alentejana, com duas belas mulheres céu e inferno, liga-se Cirilo ao seu Anteu, estacionando a viatura e recolhendo isoladamente ao seu barranco pessoal: «Ó meu barranco pessoal, ó azinheira torta, terra que se esboroa sob estes sapatos de camurça que as silvas vão lacerar! Penhascos, zambujeiros, moinhos árabes do longe, o meu Guadiana barrento! Porque será que me apetece chorar?»[7].
Até à mais profunda emoção, até ao sangue da terra continuará a escavar Cirilo. Eis o emblema da marcha dos homens bons que se transmitem e nos oferecem a dignidade. É um fim poético que dilucida uma luta necessária que tem raízes e consequências. Trata-se de um conto que nos lega contas, pestanejamento e responsabilidade.

Viseu, 5 de setembro de 2014
© Martim de Gouveia e Sousa




[1] Urbano Tavares Rodrigues, Dias lamacentos, Amadora, Livraria Bertrand, 2.º rev. 1973, p. 21.  
[2] Id. ibid., pp. 22-23.
[3] Id. ibid., p. 23.
[4] Id. ibid., p. 24.
[5] Id. ibid., p. 25.
[6] Id. ibid., p. 34.
[7] Id. ibid., pp. 35-36.

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