2014-03-31

LIMIARES DA ESCRITA: António da Silva Gaio – o autor do romance histórico «Mário – Episódios das lutas civis portuguesas de 1820-1834» (1868)


LIMIARES DA ESCRITA
António da Silva Gaio – o autor do romance histórico «Mário – Episódios das lutas civis portuguesas de 1820-1834» (1868)

«pode nem sempre ser assim», como no poema de e.e. cummings, mas tudo indicia que assim é – o que mais perto de nós se encontra é muitas das vezes o que não vemos, não sabemos ou deslembramos. Que estranho destino este de os naturais de suas terras voltarem a cara, ouvindo sempre mais «um pássaro / cantar terrivelmente longe nas terras perdidas» como ensina o autor de «Tulips and Chimneys» (1923). Mais tarde, o grande e estranhamente esquecido Vergílio Ferreira ensinaria a nossa cegueira relativamente ao entorno mais próximo.
António de Oliveira da Silva Gaio nasceu em Viseu, a 14 de agosto de 1830, vivendo juvenilmente na cidade as atribulações marciais que percorreram o país até mais de meados do século, por cá tendo feito estudos no seminário, vindo a formar-se em Medicina, na Universidade de Coimbra, em 1857, aí permanecendo, como professor, a partir de 1858. Veio a falecer no Buçaco, depois de constantes aprisionamentos, a 8 de agosto de 1870.
Nascido ali pela rua Direita, onde muito perto perderia a visão de um dos olhos em brincadeiras infantis, não é fácil não nos lembrarmos da sua presença evidentíssima. Ainda agora, vindo daquelas paragens, noto em mim um eco percutivo que tudo invade. Afinal, como não termos como emblema aquele fabuloso «incipit» da sua primeira obra literária impressa de título «Mário», nós que tanto apreciamos o espírito dos lugares e os palcos transmigrados para a ficção! Aprecie-se então este motivema literário do capítulo I «Um presbitério na Beira»:

«Conheceis a Beira Alta?
É uma fértil província, portuguesa de lei, que vê, a leste, a serra da Estrela com as suas neves; a oeste, o Caramulo com a sua tristeza; ao sul, o Bussaco de gloriosa memória, e de mística tradição.
É acidentado o solo, sucedendo-se às pequenas ondulações do terreno, as colinas, os cerros e os montes, separados, uns dos outros, por quebradas e valeiros, onde sussurram as águas, caídas das alturas.
As cumeadas ou são vestidas de urzes, e de ásperos tojos, ou são toucadas com a rama verdenegra dos pinheiros. Mas tão rica de seiva é toda a terra, que nos lugares em que o machado desbastou o pinhal, vedes logo aparecer a leira verdejante, que irá escorregando pela encosta, até se casar com a farta cultura dos vales.»

A literatura é isto: espanto e aprendizagem. E magna «ciência». Que belos quadros das romarias da Beira pela pena de Silva Gaio! Que bela aproximação a Viseu a partir da quinta de S. Caetano!
Tomás Ribeiro, que foi amigo de António Silva Gaio, assim se refere ao romancista: “amava a vida, era namoradeiro, eloquente, corajoso e temerário, ao ponto de se bater em duelo, em 1854, com Filipe do Quental, por um motivo fútil”.
Nada fútil, este romance é um claro recado ao coração. [Correio Beirão, nº 10]  
  


2014-03-30

«Sara» de José Craveirinha

 [Sara Yasmina Chafak]

SARA

Quando foste música de lua-cheia
e vestiste o mais doirado
tom do teu nimbo.

Dos lençóis o pendor
desvirgulou o parágrafo
dos lábios saboreando
teu néctar de beijos.

(1986 em Lisboa)

[José Craveirinha, Poemas eróticos, 2004.]

2014-03-28

My Girl’s Tall With Hard Long Eyes (E. E. Cummings)


my girl’s tall with hard long eyes
as she stands,with her long hard hands keeping
silence on her dress,good for sleeping
is her long hard body filled with surprise
like a white shocking wire, when she smiles
a hard long smile it sometimes makes
gaily go clean through me tickling aches,
and the weak noise of her eyes easily files
my impatience to an edge—my girl’s tall
and taut, with thin legs just like a vine
that’s spent all of its life on a garden-wall,
and is going to die.  When we grimly go to bed
with these legs she begins to heave and twine
about me,and to kiss my face and head.

assim de pé a minha rapariga é alta de duros
e longos olhos,  de longas e duras mãos silenciando-se
no vestido, apetitoso para dormir
é o seu longo e duro corpo pleno de surpresas
como níveo arame elétrico, quando sorri
um duro e longo sorriso quase sempre
espoleta em mim fundentes ardores,
e o suave ruído dos seus olhos impacienta-me
até ao limite – a minha rapariga é alta
e hirta, de finas pernas como uma trepadeira
há muito  no muro do jardim,
e vai morrer. Quando sombrios nos deitamos
com tais pernas enlaça-me e enrosca-se
à minha volta, e a beijar-me a face e a cabeça.

[tradução de Martim de Gouveia e Sousa]

2014-03-26

«Nádia» de José Craveirinha

[Nadia Alexandra Björlin]

NÁDIA

Em
tépido caudal
de velho rio
me fluo.

Na cálida praia
nenúfar desaguo
em tua foz.


[José Craveirinha, «Poemas eróticos», Lisboa-Maputo, Moçambique Editora-Texto Editores, 2004, p. 58.]

2014-03-24

LIMIARES DA ESCRITA - «Novilúnio» (1923) de João d’Almeida - «a régia flor de brancos braços»


 LIMIARES DA ESCRITA -
Novilúnio (1923) de João d’Almeida - «a régia flor de brancos braços»

É uma régia flor que cai da deslembrada poesia de João d’Almeida (1902-1935), escritor de um livro só e outras incisões, nascido ali por Sezures, Penalva do Castelo, no início do século vinte. Contra o bulício da espuma quotidiana, é de «Novilúnio» na mão que lanço estas palavras dentro da crónica. Adiando o tediário, palavra esta que tomo de Murilo Mendes, é com este livrinho, publicado em 1923 na cidade de Coimbra, que rompo, uma vez mais, um silêncio estrondoso – afinal, que hermenêutica literária esta que só trata dos admiráveis sucessos e facilmente esquece os atores menos evidentes?
João d’Almeida fez estudos superiores de Direito em Coimbra, entre 1920 e 1926, publicou no entremeio a coletânea de poemas acima mencionada, tendo integrado, no mesmo ano de 1923, a equipa diretiva da revista «Byzancio», publicação onde colaboraram, entre tantos outros, os reputados nomes de Fausto José, José Régio ou Vitorino Nemésio. Diga-se até, para simplificar, que esta revista coimbrã foi já um aquecimento para a deflagração do movimento presencista que ocorreria meia dúzia de anos à frente. Face ao descaso futuro, continuam a ser  as «Páginas do Diário Íntimo» de José Régio uma forte garantia de salvaguarda da memória de João d’Almeida.
Concluído o curso universitário, viria o poeta penalvense a exercer advocacia em Luanda, cidade onde viria a falecer, depois de ter chefiado a secretaria da câmara municipal local.
Decadentista epigonal, como se comprova, por exemplo, no poema «Ária do Poente»: «sinto-me decadente, e adoro o abismo / do Poente, num desmoronar completo.» Mas outras particularidades se podem destacar em «Novilúnio»: os pensamentos agónicos («E fico agonizando»), as taras psiconervosas e viciosas («Fico a delirar, irrequieto, / preso desta emoção toda histerismo…», as excentricidades e bizarrias multímodas («Ei-la que vem andando, a Grande Dama, / mãos em cálice aberto, sobre o seio…»), a musicalidade e a liberdade prosódica (o recensor Álvaro Maia viria a acusar João d’Almeida de não saber contar as sílabas), a imagética sensualista (rutilista, necrófila, nosológica…: «Templo de ágata», «tenho suores na fronte cadavérica»…) ou ainda os raros vocábulos («quimeral», «longevas», «vesperal», «latescentes»…).
Pintor de poentes rútilos e de desejos febris, outros encantos se desvelam ainda na limitada e estimulante obra de João d’Almeida. Converta-se este memorial em eco do tempo e em palavra perene. Noivável com o presente, a dignidade desta poesia é uma régia flor que assim abraçamos em lamentação profunda por um livro primeiro que não viu segundo. Desterrada como se promete na epígrafe camoniana, é tempo de ouvir a voz da poesia que do chão se levanta:

E na poalha,
a inundar a mortalha,
do sangue de mil feridos, pelo chão,
o Sol é um jovem rei, um rei sem par,
louco de dor, perdido na batalha…
O Sol é D. Sebastião
Morrendo devagar.                                                    [Correio Beirão, nº 9.]



2014-03-22

Farpinhas - dezasseis

FARPINHAS – DEZASSEIS

O português é um caso típico de coragem. Sem queixas que se ouçam, quando nos sítios de o fazer, mostra sempre a sua fibra na internet e nas redes sociais – que sim, que ele arde de despeito, que ele é um moinho de socos, que assim não poder ser, que da próxima é que será, que eles verão…
Ginasticado, muitas vezes o caso típico de coragem destila a sua oposição vestido com roupa desportiva e cachecol, acompanhando os seus bravos atos com os golos da sua equipa de eleição. O caso típico de coragem nacional é também conhecido por «se».
Os «ses» são assim, corajosos. Tudo aguentam, com força muita de velhos antepassados, alguns deles conquistadores – dizem. A revolução e a revolta faz-se todos os dias, na internet, nos blogues, nas redes sociais, com coragem. Não se mexendo, o se transpira coragem. Ainda ontem assistiu na televisão a um protesto de trabalhadores e conseguiu soltar uns ais e uns uis. Com tanta coragem, o «se», enredado na vertigem comunicativa, enfrenta, musculado e sem dar conta, todos os desafios. Morto, não dá conta de que a inação é terreno da morte.

Privatização da escola pública, desqualificação do serviço nacional de saúde, incapacidade da justiça, salvaguarda de poderosos, mentira, usura e roubo, eis alguns dos crimes de que estado se investiu. Na jogada, muitos assistem, nada fazendo, nada dizendo que não seja um malfadado se. Este «se» pensa que existe. Bem clama Maria Filomena Mónica dizendo que «Portugal é hoje um país de mortos». Mas o «se» vive e anda por aí.

2014-03-21

sexta ao poema - «A rua solitária» de William Carlos Williams


The Lonely Street
School is over.  It is too hot
to walk at ease.  At ease
in light frocks they walk the streets
to while the time away.
They have grown tall.  They hold
pink flames in their right hands.
In white from head to foot,
with sidelong, idle look—
in yellow, floating stuff,
black sash and stockings—
touching their avid mouths
with pink sugar on a stick—
like a carnation each holds in her hand—
they mount the lonely street.
Online text © 1998-2014 Poetry X. All rights reserved.
From 
Sour Grapeshttp://ir-na.amazon-adsystem.com/e/ir?t=jough-20&l=ur2&o=1 | The Four Seas Company, 1921

A Rua Solitária
A escola acabou. É muito o calor
para passear à vontade. À vontade
passeiam elas pelas ruas de roupa leve
para passar o tempo.
Como cresceram! Transportam
na mão direita róseas chamas.
Níveas dos pés à cabeça,
passam de olhar furtivo –
de amarelo, roupas leves,
pretos o cinto e as meias –
roçando as ávidas bocas
no pau de açúcar rosado –
como cravo que as mãos tocam –
elas avançam pela rua solitária.
[tradução de martim de gouveia e sousa]

2014-03-20

[no mundo]

[no mundo]

e sem milagre o avanço faz-se nas águas
caminhante cego o homem humidifica-se
na sociedade canibal rende-se ou não
e quando a dorsalidade impera os líquidos
tomam-no da medula à pele em coroa:
que serias se abraçado ao instante às veias
dos interesses e às clareiras do egoísmo?
o que és assim estrangulado na matéria
de que outrora fugiste que vinho novo és?
que veias enfim libertadas se pungentes
todas as partes veem o enredo das teias?
deixa de novo que a beleza te trabalhe
abandona a pungência do encordoamento
e árduo na memória permanece intacto.

cúmplice assiste agora ao que és no mundo. 

2014-03-19

«Beatriz Pinheiro deu vida à cultura de Viseu» - por Fátima Mariano


Artigo de Fátima Mariano sobre Beatriz Pinheiro publicado, em 8 de maio de 2010, no «Jornal de Notícias»...

2014-03-18

farpinhas - quinze

FARPINHAS – QUINZE

Foi Ricardo Paseyro quem me chamou a atenção para a proliferação destes seres tão adequadamente apodados de «filósofos saca-migas». Mas eu já os conhecia e sempre, sem grande acrimónia, contra eles vociferei. Coitados, se se alimentam de evidências e vulgares notícias quotidianas!
Como máquinas de recorte, os filósofos saca-migas estão sempre perto de nós. Amigos do mundo, mesmo que o conhecimento tenha segundos, estes filósofos nascentes nascem sábios. Por via de norma, estes amigos do saber falam sobre assuntos muito recentes e às vezes contam-nos a sua bulimia – para eles não há fronteiras, bebendo em grandes haustos televisão, internet, música, jornais, lançamentos, colóquios, casamentos, batizados, necrológios e, pasme-se, informação detalhada dos produtos das grandes superfícies.
Estes pinta-monos da moda, também ditos filósofos saca-migas, são muito bem apanhados, porque, de facto, tudo apanham. Presos no acúmulo dos acontecimentos, alguns destes espécimes andam a escrever umas inenarráveis «histórias de um átomo» há duas décadas. Outros, cumprem ainda o rigor da primeira década. Mas, em rigor, o mais normal é que o filósofo saca-migas nada diga. Na azáfama do sacar, o estranho filósofo de nada se apercebe. E nisso está toda uma filosofia que o saca-migas não divisa.

2014-03-15

LIMIARES DA ESCRITA Quadros de João Pedro Grabato Dias em «40 e tal sonetos de amor e circunstância e uma canção desesperada» (1970)


 LIMIARES DA ESCRITA 
Quadros de João Pedro Grabato Dias em 40 e tal sonetos de amor e circunstância e uma canção desesperada (1970)

Todos nos lembramos dele e do perfume diferente que a sua presença infundia. O poeta João Pedro Grabato Dias, noutras artes (na vida e na pintura), António Quadros, esteve junto de nós, mergulhando-nos na difícil capacidade da diferença. Mais alto que baixo, tisnado, de boina basca e muitas vezes de cachimbo, alinhava-se na sua impecável verticalidade dentro de um fato-macaco azul, o nosso escritor divisava-se desde logo, ao vento entregando os caracóis transbordantes dos longos e sobrantes cabelos. A bem dizer, a imagem do poeta nascia das originais patilhas. Vejo-o todos os dias cruzar a nossa cidade e ele já não está entre nós. Mas está.
António Augusto de Melo Lucena e Quadros nasceu em Santiago de Besteiros,  a 9 de julho de 1933, vindo a falecer, por início de julho de 1994, no lugar natal, com inconclusos sessenta e um anos de idade. Entre os pontos alfa e ómega, o artista diplomou-se em Pintura pela ESBAP (onde ainda lecionou, preparando-se para um sonhado doutoramento em Arquitetura), estudou Gravura em Paris, passando a viver em Lourenço Marques até 1985. Cantado por José Afonso e Amélia Muge, João Pedro Grabato Dias (também Frei Ioannes Garabatus e Mutimati Barnabé João) é detentor de uma obra literária desconcertante, vasta e quase sempre genial.
E tudo começou na velha Lourenço Marques, quando o poeta se viu premiado com o prémio Reinaldo Ferreira 1968 da câmara local. Eugénio Lisboa explica como tudo se passou: deparando-se com um poema excecional, o júri do concurso (de que faziam parte, para além de Lisboa, Rui Knopfli, Orlando Mendes, Eduardo Parreira e Maria de Lourdes Cortez) logo decidiu da superioridade de um poeta que nunca veio a reclamar o prémio, nem tão pouco se apresentou – até ao dia em que irrompeu perante si João Pedro Grabato Dias, agora com rosto social, com um punhado de sonetos que originariam os 40 e tal sonetos de amor e circunstância e uma canção desesperada.  Diz Eugénio Lisboa na segunda orelha do livro: «Os sonetos traziam de novo aquela voz singular ulcerada e mitológica, ensimesmada, onírica, ironicamente realista, brutal, descabelada, ardentemente bizarra, reveladora de um mundo fantasmagórico e quase demasiado verdadeiro, traduzido por uma extraordinária fauna léxica que a um tempo nos subjuga e desorienta…»
Sem hesitação, reabro o livro e leio e subjugo-me a um magnífico itinerário lírico que diz:
                               3

Percorro um itinerário de palavras
rumo ao estratificado. Pouso o metro
infantil e maquinal, o quase incesto
matinal do riso. Ó puras glabras

endechas transparentes, do canhestro
inquietante amor das velhas fadas!
Roçagante festim de sedas! Searas
ornadas de despojos do funesto

rir apocalíptico e dorida
ânsia! Fosse eu menino ainda, e a dor
só a antiga sensação carente,

grande avó de regaço permanente
acolheria o sono. Hoje, incolor
orfeu de luxo, a dor é preferida.


Espantosamente em nós, na raiz do granito das nossas ruas, as palavras dizem o que são, «desde Tomar a Viseu»… 

2014-03-14

[incêndio]

[incêndio]

a água cai copiosamente nestes ombros que me exaltam
é trabalho muito antigo que me faz cão sentado no mundo
limo todos os dias as arestas do vento e as más notícias
e  nu regresso ao labirinto da casa no estertor da noite…
lesto abro todas as janelas regressando ao excesso da cal
limpo mesmo as últimas humidades a sujidade das roupas
os terrores sagrados desaparecem na ilusão das alegrias
e os caminhos afundam-se dos telhados a chuva cantante
lavando a pele as rugas luminosas os esteios da carne…
no dia vindo nascente uma fonte ázima  traz a erva à boca
brancas as mãos fundem-se no chão no soalho ardem.

2014-03-12

[plenitude]

[plenitude]

é no corpo que o mundo se escreve
todas as memórias são assim líquidas
como sangue que o coração empurra.
olha-te dentro até ao fundo do poço
não esquecendo as velhas imagens
que o vão tornando buraco antigo.
o que vês e sabes passeia-se nos ossos
trilhando os sulcos da pele como gritos
e às vezes as mãos rebentam na boca.
escrito na pedra o corpo arde pleno…

2014-03-11

RANGEL OU O LUGAR COMUM

RANGEL OU O LUGAR COMUM

Achando codicioso despertar os 101 Dálmatas ao ritmo beat do twitter, Paulo Rangel banalizou-se em banalidade mais do que banal. Dizendo que a agenda europeia de Seguro é lírica Rangel nada diz que não passe pelo descuidado uso de uma palavra que deveria ser respeitada. Mas, claro, quem não sabe da arte lírica só poderá mostrar tacanhez e vulgaridade. E bordão é também dizer que «Durão tem mais apetência para cargo internacional». Não nos diga, senhor candidato!
Há, de facto, gente com muita apetência. Di-lo, por exemplo, um Arnaldo de Matos, por novembro de 1993: «Se um indivíduo como o Durão Barroso não hesita, contra instruções minhas, em sanear uma professora excelente como a Magalhães Colaço, não é de admirar que se torne depois ministro do Cavaco. Ele fez tão mal quando esteve na esquerda como quando está na direita.»

Veremos, em breve, para que servirá de novo a apetência de Durão. Até lá, em ritmo banal, ouviremos Rangel e, se calhar, Assis. Mas ouviremos? 

2014-03-10

LIMIARES DA ESCRITA A «Vida Bohemia (amor e satyra)»: José Branquinho & o descaso


LIMIARES DA ESCRITA 
A Vida Bohemia (amor e satyra): José Branquinho & o descaso
Sulcando os mares da poesia e o peso de mais de um século, resulta estranhíssimo que a mais do que produtiva lira de José Branquinho não seja exalçada pelos sabedores da coisa literária e antes seja praticamente sonegada. Não se entendendo, desde há muito e cada vez mais, a cultura como central energética, não espanta até que alguns dos nossos melhores nomes – e só os de cultura me interessam… - permaneçam pendurados numa qualquer rua, sem outras referências e mobilizadores enquadramentos. Afinal, os nomes mais não são do que meros usos utilitários ao sabor da usura política.
José Branquinho nasceu em Viseu, no ano de 1871, tendo estudado na cidade, por cá cumprindo algumas etapas liceais, antes de entrar na vida ativa como amanuense do Comissariado de Instrução Primária distrital. Dividindo-se a sua atividade profissional pelas cidades de Viseu, Porto e Lisboa, o legado de José Branquinho é todo ele poético e cultural – dispersa permanece ainda uma importante colaboração do poeta em publicações periódicas. Acometido por doença mental, Branquinho, que era revisor do Diário de Notícias, suicidar-se-á em 1916, engrossando um já caudaloso rio de «suicidados da sociedade» com indesmentível genialidade – lembrar Ângelo de Lima, António Gancho ou Sebastião Alba é aqui mero exercício…
Mas esqueçamos o condicionalismo que tantas vezes permeou autores maiores e deixemo-nos levar por esta Vida Bohemia (1901), uma edição da tipografia viseense Folha, que abre sob a alçada de homenagem do Autor a seu Pai, Francisco Gomes de Macedo Branquinho («Se alguma coisa vale ou significa este livro, sejam esse valor e significação testemunho de amor filial, e homenagem ao seu inquebrantável carácter.») e se alonga por rotas de dor e de confissão. Assim acontece com o esclarecido e ominoso primeiro poema, «Eu», que logo parece desvelar o futuro a haver do então poeta nascente:
Como tantos de vós, na minha infância encalma,
Percorri a cantar a estrada da loucura
              Em doce devaneio;
Simples de coração e de ilusões na alma,
              Feita de paz e anseio.
              De esse passado ardente,
De esperanças ideais numa ideal ventura,
Dos sonhos infantis que já não sonho agora,
              Sinto que no meu seio
              A saudade mora!

E segue o poeta por via lacrimosa lembrando o tempo das ilusões e das quimeras, rindo e chorando dos ritos da dor, fingindo como se não fingisse: «E finjo que não amo o que em verdade adoro! / E minto para mim, e rio de mim mesmo!» (explicit do poema «Eu»).
Sem grandes sinais de abismos extrapoéticos, mostra-nos ainda o poeta lugares da cidade de Viseu que todos conhecemos (o Fontelo, o Cemitério, o Rossio…) ou espaços culturais que se querem habitados (Victor Hugo, Augusto Hilário, João de Deus…). Hábil e certeiro, era temível a verve lírica e satírica de Branquinho, como acontece no poema «Sua Ex.ª (Tipos… de fora)», a lembrar, nalguns pontos, o grande Cesário Verde.
Lutando contra as mágoas persistentes, José Branquinho merecia um outro futuro e um outro modo de atenção. Mas quem quer olhar para esta existência que assim vai na levada? [Correio Beirão, nº 7]


2014-03-04

Pensamento assistido por Rui Nunes


«Aquilo que me perturba em Portugal é a mansidão.» [Rui Nunes, in Expresso / Atual, 30 de novembro de 2013].

Perante o pântano, tal diagnóstico merece meditação. E ação.

2014-03-01

LIMIARES DA ESCRITA: António Alves Martins, o poeta e a desgraça


LIMIARES DA ESCRITA
António Alves Martins, o poeta e a desgraça

É um lindíssimo objeto estético aquele com que António Alves Martins inicia a sua obra impressa em livro. Principalmente poeta, mas também jornalista e diretor editorial (da coimbrã A Galera), o sobrinho do bispo Alves Martins nasceu em Viseu, no dealbar de outubro de 1894, vindo a falecer, depois das vivências coimbrãs e lisboetas, nesta mesma cidade a 22 de fevereiro de 1929, vitimado pela tuberculose que o afetava desde há anos. Talvez o burgo mal o lembre, talvez não o conheça até. E, no entanto, estudou no então Liceu de Viseu, deambulou e sonhou nas esquinas agudas das ruas da cidade que é seu berço e influência, bem antes de ter cursado Direito em Coimbra e ter sido bancário em Lamego, redator do Diário de Lisboa e escrivão no espaço que o viu nascer.
A coletânea Anunciação, ilustrada na capa por António Soares e vinda a lume em agosto de 1921, espalhava desde logo, cataforicamente, o rito dolorido do curso vital – afinal, o que o poeta anunciava, em matriz neorromântica, era a lassidão e exaustão de tudo. Com motivos assinalados (ingratidão, saudade, ausência, ansiedade, destino, mágoa, evasão, inscrição, desengano… ), lugares de eleição (a Senhora da Lapa, Leomil e a zona do Távora…) e afinidades eletivas literárias (Camilo e Guedes Teixeira, por exemplo), destaca-se ainda do conjunto poético a injubilosa nota sobre o país: «ai, que Portugal / é o país da ausência!».
António Alves Martins será sempre um poeta com inscrição na literatura portuguesa. Multímoda, a atividade do escritor estendeu-se da tragédia ao mais depurado lirismo, do drama à entrevista (e Fernando Pessoa foi um dos seus entrevistados…), do academismo à colaboração crítica e literária, por exemplo. Perseguido pela desgraça da má sorte, um poeta como Alves Martins não se rende nunca, antes assume aquilo que é: «Enfim, / Desculpa, eu sou Poeta: / Só sei escrever assim!» (p. 15).  
E quem só sabe escrever assim aproxima-se, no sentido de Gamoneda, do território do frio onde a poesia conhece o revigoramento soprado pela morte. Assim nesta «Sina crepuscular» que transcrevo e o poeta dedicou ao seu irmão Adelino:


Erro, de incerto. Desconheço o norte.
Dentro de mim a luz do sol declina!
- Um cigano vai ler a minha sina:
Estendo a mão… vou entregar-me à sorte!...

No vagabundo olhar, como em transporte,
Sonho a Aventura, a Caravana, a Ruína…
- Diz-me que tem inspiração divina;
Que prende a Vida e tem poder na Morte!

Revejo-o bem: descende de alcateias;
Andou a monte; incendiou aldeias!...
- Aberta a mão, vai ler-me o desengano.

Depressa, a minha sina, oh peregrino!
- Meu Deus! Como será o meu destino,
Para viver na alma dum cigano?! (pp. 67-68)



E há um brilho nisto que me entra no olhar. Como não ouvir a voz do poeta na noite em que o escrevo? [Correio Beirão, nº 6.]