2013-12-29

Cesário, mestre da literatura portuguesa


Cesário Verde, em estranheza que o tempo tornou fulgurante, é o mestre de muitos. Por exemplo, de Pessoa e de João de Araújo Correia, «o mestre de todos nós». Encontramos essa nota na justíssima crónica «Mestre Cesário Verde»:

«Cada palavra de Cesário Verde é uma sugestão de coisas maravilhosas. Não se podem contar nem exprimir. Mestre de mestres, o Cesário Verde...» [João de Araújo Correia, «Cartas da Montanha», Régua, Imprensa do Douro, 1955, p. 149.]

Cesário, mestre de mestres...

2013-12-26

João de Araújo Correia, Pascoaes e a língua


É uma alegria ler aquela crónica de título «Pascoaes e o idioma» e mais se ficar a admirar João de Araújo Correia e Teixeira de Pascoaes, assim «pequenino, leveiro, afectuoso» (p. 64). De conversa funda e variada, Pascoaes não esquecia nunca a fundante Língua Portuguesa. Assim discorre, a propósito, Araújo Correia:
«Disse, de reformas ortográficas, o que Mafoma não terá dito do toucinho – se acreditarmos em escrevedores de polpa no capítulo Mafoma.»
Corroborando Pascoaes, o autor de Cartas da Montanha (1955) adianta ainda:
«Dei razão a Teixeira de Pascoaes, cismando entre mim que as reformas ortográficas impõem a escritores pensantes (…) muito disparate. Misturam, no mesmo tacho, o assimilável e o indigesto. Se não houver cautela, desarranjam a máquina de quem é são e escorreito.»
E segue a crónica, que transcrevo, com as palavras de Pascoaes:
« - Quem ofende a Língua ofende-me a mim. A Língua é a minha dama. Se não fosse a Língua, que seria eu? Se não fosse a Língua, eu não seria nada…
Meditem-se estas palavras simples de Teixeira de Pascoaes. Meditem-nas os meus amigos, aqueles que choram o tempo e o latim que às vezes gasto, defendendo o Idioma. Considerem o que sou, pouco ou muito, mas admitam que eu não seria nada se não fosse o Idioma. Deixem-me ser grato a um credor que nunca me incomodou. Para lhe pagar juros de juros, merece que eu o sirva, sem remuneração, até o fim da vida.
Se há mal nisto…
A Língua Portuguesa, pela maneira como aí se fala e se escreve, é a meus olhos uma cidade maravilhosa desconjuntada pelo furor dum terramoto. Por entre escombros, espreitam mármores divinos. Cumpre a todo escritor desenterrá-los.
     Abril – 1953. [João de Araújo Correia, Cartas da Montanha, Régua, Imprensa do Douro, 1955, pp. 66-67]  


Mas quem quer mal aos mármores divinos?

2013-12-21

OS LIVROS DE 2013: Gonçalo M. Tavares, «Atlas do corpo e da imaginação (Teoria, fragmentos e imagens)», Lisboa, Caminho, 2013 (setembro).


OS LIVROS DE 2013: Gonçalo M. Tavares, Atlas do corpo e da imaginação (Teoria, fragmentos e imagens), Lisboa, Caminho, 2013 (setembro).

Como uma volição, este atlas atravessa o corpo e é uma central de pensamento, abrindo caminhos, dialogando, interiorizando o exterior individual e interpretando. Alarmante, porque alarmado o «incipit», é sob o signo do pensamento que o corpo se revela em busca de um sentido para a ação, ainda que as hesitações nos avassalem – como se elas não fossem motor e avanço e descoberta.

Convocando pensadores fortes como Steiner, Heidegger, Bachelard, Ortega y Gasset, Wittgenstein, Barthes, Adorno, Vergílio Ferreira, Nietzsche e tantos outros, estes atlas é um manual de sobrevivência cultural, uma central de energia que nos invade, dando-se, sendo em nós.

2013-12-20

OS LIVROS DE 2013: Manuel Gusmão, «Pequeno tratado das figuras», Lisboa, assírio & alvim, 2013 [fevereiro].


OS LIVROS DE 2013: Manuel Gusmão, Pequeno tratado das figuras, Lisboa, assírio & alvim, 2013 [fevereiro].

É um raro tratado poético este livro. Dividindo-se em «O caderno das paisagens», «Os desenhos do escultor ou notas sobre o trabalho da inspiração – um poema em memória do Jorge Vieira», «No labirinto das imagens – o que falta para serem um filme?», «Filmar o vento» e «A pintura corpo a corpo – os corpos da pintura; pintores pintados», o Pequeno tratado das figuras de Manuel Gusmão exalta-se em movimento de aracne, desvelando a tapeçaria, a armadilha textual que é composta por «Ramos lianas folhas e fios» (p. 11) que tecem «a clara teia» que envolve, enreda e devém memória como marca de água na página em branco que deseja permanecer. Como Anteu, é na terra que a poesia ganha força, é aí que as palavras  queimam  e dizem «do surdo clamor/ do mundo, do vivo enquanto vivo» (p. 21).
Áspero, duro, pleno de marcas e cicatrizes, o «tratado» abre-se ao olhar, homenageia em memória a criação (de Jorge Vieira, por exemplo) e capta os inícios da possibilidade. As palavras são tintas sobre tintas, inscrições sobre inscrições devindo. Criado, o poema mostra a metalurgia, a fuselagem, as figuras da criação e o vento hábil. Perto, os desenhos e as pinturas são sangue, «corpos / atómicos, em relevo nas margens da luz, / estremecendo crepitantes» (p. 39).

Fundo, este Pequeno tratado das figuras é grande como tudo o que é essencial – a arte, v.g.

2013-12-19

UHF na Casa da Música (18 de dezembro de 2013)


Semeando e correndo, mais do que de cavalos rapidíssimos, eis chegada a hora. Longe, muito perto aqui, a disseminação colhe-se nos dedos, na palma da mão e no rigor cordial, isto é, do coração. Transbordando, empolgando, os UHF são um caso de descaso - umas vezes estranhamente esquecidos, outras mal avaliados, mereceriam um outro país?
Nacionais e portugueses, afirmando a língua, o grupo percorreu em cerca de 3 horas uma antiga estrada que felizmente conheço. Vibrantes, rudes, afetuosos, sem rede, levaram a música à Casa com a naturalidade de uma estruturada oficina que conhece o seu mester e aos seus oferece o melhor.
Desabando, o céu caiu-nos em cima rindo e chorando de contentamento. E até o nevoeiro nos fez ver que era a HORA...

2013-12-18

OS LIVROS DE 2013: Herberto Helder, «Servidões», Porto, Assírio & Alvim, 2013 (maio).


OS LIVROS DE 2013: Herberto Helder, Lisboa, Assírio & Alvim, 2013 (maio).

Inconcluso e decetivo relativamente ao que é uma cabeça, como o diz o paratexto inicial, é toda uma cerebralidade memorial que logo ascende na «prosa» inicial (pp. 9-18) – é um tempo devastado, fundo, mineral e zoológico que povoa a meninice e o adolescer lá longe, é até um eco brandoniano que se despega fulgurante do fundo da primeira página: «Uma noite acordei com o som dos meus próprios gritos» (p. 9). Orgânicas, febris, pérfidas, perversas, quentes, na cabeça todas as imagens devinham mágicas e ácidas, como um antiquíssimo bestiário maligno e redentor. Não falta aí sequer o rito vergiliano do espanto especular. Desde aí, uma espessa cicatriz de liberdade e de insujeição não mais deixará o poeta.
A  poesia diz-se herbertianamente «nunca uma chegada seja ao que for» (p. 12) e uma difusão dos chamados «ganhos fundamentais». Devorante, sem mundo material, eis a limpidez da gramaticalidade.
Observando-se, o Poeta interroga as suas servidões («dos trabalhos do mundo corrompida / que servidões carrega a minha vida» [p.19]), os caminhos da desmemória e um à frente suspenso: « e eu esteja atrás vivendo desse próprio esquecimento, / a mão cortada, cortado o nome, além da morte escrita, / pelo buraco da voz o nome escoado para sempre» (p. 117).

Fulgurante, em história poética fulgurantíssima, como não ficarmos presos por estas Servidões de Herberto Helder?

2013-12-17

OS LIVROS DE 2013: Alberto Manguel e Gianni Guadalupi, «Dicionário de lugares imaginários», Lisboa, TINTA-DA-CHINA, 2013 (agosto).


OS LIVROS DE 2013: Alberto Manguel e Gianni Guadalupi, Dicionário de lugares imaginários, Lisboa, TINTA-DA-CHINA, 2013 (agosto).

Denegando os lugares, eis que uma boa parte da cultura e dos seus ecos vem até nós, em evidência nunca assim vista. Obliterando a materialidade hoje tão espiolhada, Manguel  e Guadalupi (RIP) levantam, em inventário que não «inventa», os «loci» imaginários que, sublimando o real, não o são, sendo-o.
Compêndio de evasão, de errância, de mitemas e de desejos, este dicionário é um lugar de muitos lugares, é uma viagem dentro e fora, uma contemplação que sabe o seu espaço – um além que o é, não o sendo ainda. E sendo-o.

De ABADIA, A a ZYUNDAL este dicionário é claramente obrigatório não só para os amantes das utopias. E, afinal, quem nelas não vive, podendo-o fazer?

2013-12-16

OS LIVROS DE 2013: Urbano Tavares Rodrigues: O livro aberto de uma vida ímpar, Diálogo com José Jorge Letria, Lisboa, Guerra & Paz, 2013 [setembro].


OS LIVROS DE 2013: Urbano Tavares Rodrigues: O livro aberto de uma vida ímpar, Diálogo com José Jorge Letria, Lisboa, Guerra & Paz, 2013 [setembro].


Trabalhando os afetos com mestria, José Jorge Letria levantou, neste final de novembro, uma das belas histórias literárias de amizade. Urbano Tavares Rodrigues, «fraterno e firme», como a abertura poética o diz, mostra-se como foi e é em nós – um monumento artístico e um prodígio de humanidade. Esta vinda a lume de uma conversa entre os dois escritores havida por dezembro de 2010 é um testemunho fundamental sobre um dos não muito escritores que trabalharam para a cultura portuguesas durante sessenta anos ou mais – ouvir Urbano em direto é saber que há mortes impossíveis e que há vidas que não cessam de nos iluminar.

2013-12-15

OS LIVROS DE 2013: Carlos Clara-Gomes, «crónicas do inverno», Viseu, Edições Esgotadas, 2013 [outubro].


OS LIVROS DE 2013: Carlos Clara-Gomes, «crónicas do inverno», Viseu, Edições Esgotadas, 2013 [outubro].
Perseguindo um tempo de palavras ditas e cantadas, na modulação do imediatismo comunicativo, estas crónicas chegam-nos da ação performativa. Recuperando a eficácia e o peso da verbalização, eis a luz do palco e a subtileza oral dos aedos – este livro antes de o ser já o era, dito e representado em direto antes do diferimento de objeto publicado.
Do contador, falam as palavras; da envolvência, também o contador fala. Encenadas, os ditos, ora finamente poéticos, ora ferinos como lâminas, trazem a escatologia de um modo de ser, de um modo de evocar, de um modo de esquecer. Desvelando-se, o sujeito condutor escreve-nos e inscreve-nos numa viagem que todos conhecemos, mesmo que o tenhamos esquecido.

Estas crónicas, magnífico derrame de histórias e ulcerações, merecem o melhor de nós – uma presença atenta, na mostração, e uma complementar leitura para outra compreensão. E o inverso também não é pior. Viver é isso: é aprender, é viver, é encostarmo-nos a estas palavras urgentemente, como quem aprende…

2013-12-14

OS LIVROS DE 2013: Eugénio Lisboa, Acta est fabula. Memórias - III - Lourenço Marques revisited (1955-1976), Guimarães, Opera Omnia, 2013 (outubro).


Estes escritos de Eugénio de Lisboa haverão de constituir um dos mais importantes documentos memorialistas sobre a cultura portuguesa do século XX. Compreendendo um espaço temporal entre 1955 e 1976, o nosso «maître à penser» escreve-se, no sentido de George Bernard Shaw, apresentando-nos um quadro luminoso sobre a sua vivência moçambicana e conexa aproximação às belas letras: desde o fascínio profundo com Fialho de Almeida, passando pela rendida admiração por Reinaldo Ferreira e a estreita amizade com Rui Knopfli, o fascinante encontro com Grabato Dias (António Quadros) e Zeca Afonso, até tantas outras figuras maiores da «feira cultural laurentina» - Alberto de Lacerda, João da Fonseca Amaral, Craveirinha, Virgílio de Lemos, Glória de Sant’Anna…

Avultam ainda viagens sentimentais, leituras, pensamentos e influências que nos ajudarão a melhor interpretar os signos em volta. Tais marcas, fortíssimas, são aqui o pagamento de uma dívida de Eugénio Lisboa à cidade de Lourenço Marques. Quem não quererá ter uma dívida assim?

2013-12-13

OS LIVROS DE 2013: Eu sou uma antologia – 136 autores fictícios de Fernando Pessoa – Edição de Jerónimo Pizarro e Patricio Ferrari [Lisboa, Tinta-da-China, MMXIII (novembro)].


OS LIVROS DE 2013: Eu sou uma antologia – 136 autores fictícios de Fernando Pessoa – Edição de Jerónimo Pizarro e Patricio Ferrari [Lisboa, Tinta-da-China, MMXIII (novembro)].

É uma nova luz sobre Pessoa este olhar atento sobre a desmultiplicação. Partindo da perplexidade pessoana  de não saber quantas almas tinha, Pizarro e Ferrari, provando que a consistência não tem idade nem pátria, encaram a «escritura» com o rigor dos apaixonados – amar é afinal perder quaisquer transbordamentos e respeitar o que está como quem sabe o que está. Esta lição filológica vem muitas vezes de fora. Dentro, há um emaranhado de quintinhas que torna os autores estéreis e manobráveis. Integrando e excluindo, e sempre explicando, este trabalho é, sem dúvida, um lugar maior sobre a magnífica orquestração daquele que disse: «sejamos múltiplos, mas senhores da nossa multiplicidade».

Não ver esta antologia em Pessoa é não ver a literatura em 2013 servida sabiamente por quem sabe. O resto é Pessoa e os estilhaços calculados.

Serão à volta de Aquilino: 1) «Aquilino Ribeiro como fonte de inspiração na valorização da biodiversidade e na cultura do "genius loci" das Terras do Demo» pelo Dr. Paulo Barracosa; 2) Apresentação do nº 21 dos «Cadernos Aquilinianos».


2013-12-10

O pintor Artur Loureiro nas «Cartas da Montanha» de João de Araújo Correia


As «Cartas da Montanha» (1955) são, para mim, um poderosíssimo livro do «Mestre de nós todos». A primeira entrada, de título «Recordação do Porto» e datada de 1948, é dedicada ao Porto, ao Palácio de Cristal e principalmente a um primeiro encontro com Mestre Artur Loureiro, que é aqui motivema poético e central. Transcreva-se o «explicit» e aprecie-se o rigor poético de uma prosa enxuta, quase única:

«Despedi-me do Mestre. Despedi-me do velho que só tomava leite para ter saúde e se erguia cedo para trabalhar. Despedi-me do profissional que elogiava o "amador" e lhe queria a ponto de lhe negar a doença para se consolar. Despedi-me do Palácio e esqueci o bonde. Esqueci-me de tudo quanto era feio. Desci a pé até à "Brasileira". Tomei café. Próximo da minha mesa, numa tertúlia, enterravam-se vivos os homens de talento.» [João de Araújo Correia, «Cartas da Montanha», Régua, Imprensa do Douro, 1955, pp. 15-16].

Noite fulgurante, Mestres Artur Loureiro e João de Araújo Correia!

2013-12-09

[EU LISPECTOR]


EU LISPECTOR
eu lispector
tu lispector
ela lispector
ele lispector
nós lispector
vós lispector
elas lispector
eles lispector

como um grito
eis o prazer
de conjugar a literatura

sem acordo e com cê .

2013-12-06

Hoje é dia de Urbano Tavares Rodrigues... e depois também!


Como uma lição, em dia de Urbano Tavares Rodrigues, ouça-se-lhe a voz e a admonição:

«Por toda a parte os mais fortes vencem os mais fracos, nem os deixam chegar-se ao festim da vida.
Terá de ser sempre assim, Liriana?». ["explicit" de «Nunca diremos quem sois», 2002, p. 213].

2013-12-05

Celebração do 90º aniversário de Urbano Tavares Rodrigues, com a projecção do filme documentários de António Castanheira "Memória das Palavras", seguida de conversa informal.


Celebração do 90º aniversário de Urbano Tavares Rodrigues, com a projecção do filme documentários de António Castanheira "Memória das Palavras", seguida de conversa informal.

2013-12-02

Pensamento assistido com Urbano Tavares Rodrigues


Ir por aí «fora até ao beijo do mar, celebrar a glória da chegada» (Urbano Tavares Rodrigues, Nunca diremos quem sois, 2002, p. 20) de um outro tempo...