2013-06-30

Adaptações das herbertinas «Servidões» - nove.

a mão lavra em osso sim*
afunda-se na pele a faca
e os exercícios de vida
fulguram nos dedos aí
em chamas fulguram
rompendo das ardências
com unhas sobre trevas
um pouco do fogo explodindo.
__________________________ 
Cf. o verso herbertino da p. 67 de «Servidões»: «eu que lavro com a mão em osso vivo».

2013-06-26

Adaptações das herbertinas «Servidões» - oito.

[aos subterrâneos do infra infra]

«gosto agraz na boca»
fruto que cai no ventre
sombreando a planura
as fissuras da pele acme.

assim a culminância do ato
vontades rasas de vigor
esfregando mãos no azebre
como seres peregrinos.

mas esta festa não é vossa,
ó subterrâneos  do infra infra.

2013-06-25

Adaptações das herbertinas «Servidões» - sete.

[fogo no mundo]

no mundo a poeira não deve ao ânimo a calma
antes a antiquíssimo tatear que vem do fundo
onde o tempo elide o cálculo e os simples gestos
daí o sangue faz rasura da vontade porque chama
não morre ardente irrompendo na manhã como hino.

como hino a fonte canta e todos os líquidos clamam
contra os abismos os medos as traições os enganos
que nenhum vazio corra ou seja que expluda sendo
como escasso inferno manchando-nos as almas…

então todas as vertigens «como quem fabrica uma
festa, um teorema, um absurdo»* com este fogo.

*Verso extraído do poema «nunca mais quero escrever numa língua voraz» ínsito nas Servidões de Herberto Helder, p. 57.

2013-06-24

Adaptações das herbertinas «Servidões» - seis.

[ilha]

não desistir agora nesta ilha
que sem ganhos fundamentais
antes o basalto e a espuma.

vertiginosos os ventos circulam
tocando a topografia da pele
e esmagando a retórica oca.

nascendo de si o dia vai chegar
irreferenciável   clave nos dedos
absoluto explodindo no futuro.

esta a mão o impossível  vindo
à flor do rosto aos níveos dentes.

_________________________
Referindo à sua ilha natal, diz Herberto Helder: «e fora nela contudo que eu arrecadara os ganhos fundamentais» (Servidões, p. 17).

2013-06-23

Nestas coisas só existe um lado

NESTAS COISAS SÓ EXISTE UM LADO

De hoje para hoje sonhei com a límpida crónica de José Vítor Malheiros, “Os professores fizeram greve e o Governo lançou o caos”, vinda a lume no Público de 18 de junho. E desse sonho ressuma a certeza de que quem não preserva a equidade, é insensato, desrespeita os tribunais e as leis, é unilateral, é iníquo e muito mais não tem condições para exercer funções.
Vamos ao caso prático de Nuno Crato. Inimigo figadal do “eduquês”, cultor do ensino com dor e adepto do rigor dos exames, o detentor da pasta da Educação, notável matemático (dizem!), falha de forma crassa naquilo de que fizera profissão de fé – nunca ninguém se saiu tão mal quanto este ministro no lançamento de uma jornada de exames nacionais.
Não pode haver sujeitos com sujeição. Ser-se sujeito é mesmo o oposto disso. E se o que aconteceu tem o nome de Passos Coelho, restaria a Crato um caminho. Sem grandes cálculos, há demissões que devem fazer estrada. Não estar ao lado de alguém que por tudo e por nada quer mudar as leis só glorifica tal saída. E vem-me ao cérebro o explicit da crónica de Malheiros: «Mas Passos Coelho sonha com uma lei de serviços mínimos que transforme o direito à greve numa anedota. Como se não tivéssemos já anedotas suficientes.»

2013-06-22

Adaptações das herbertinas "Servidões" - cinco.

Viver, viver "demoniacamente toda a nossa inocência" (Herberto Helder, Servidões, p. 13).

2013-06-21

Adaptações das herbertina «Servidões» - quatro

[poema]

estende-se sem - o poema.
nunca será chegado nunca.
o poema - estende-se sem.
não se escreve - o poema.

2013-06-20

Adaptações das herbertinas «Servidões» - três


Eis o momento da peste, o espelho ocioso refletindo o cinzento de tudo, o azebre no sangue, todos os tecidos inconjuntos fracionados pelo corpo. Agora isto: a peste. Um ou mais gritos num grito, o ritual animal das emboscadas, os rios sobre as pontes destruindo. Que nos resta, pois, que não seja «qualquer coisa pérfida e perversa neste mundo das frutas muito fortes, dos animais esquartejados, dos cheiros, este mundo espesso e quente, um mundo de imagens orgânicas» (Herberto Helder, Servidões, p. 10) em que nos deixamos afundar. A peste no mundo aqui, a certeza disso.

2013-06-19

Adaptações das herbertinas «Servidões»- dois.

Uma noite acordaremos com o som dos próprios gritos. Di-lo o sujeito de «Servidões» (Herberto Helder, op. cit., p. 9): «Uma noite acordei com o som dos meus próprios gritos». Mas quem não ouve?

2013-06-18

Adaptações das herbertinas «Servidões»

Estaremos «atentos às matérias e sopros do mundo» (Herberto Helder, «Servidões», p. 9)? [adaptado]

2013-06-17

«O ANTROMORFISMO DESTAS ESTRANHAS CABEÇAS DIRÁ/ O QUÊ?»

«O ANTROMORFISMO DESTAS ESTRANHAS CABEÇAS DIRÁ/ O QUÊ?»[1]

Nada dirá quem nada disse sobre esta luta de uma classe estranhamente vilipendiada e humilhada por chamamentos servis. Mentindo e fugindo, os “fazedores” educativos cavam uma grande sepultura onde pretendem imergir uns milhares de seres sem nomes ditos professores. É muito, é pouco? Muito é o que o PS não diz – e igual peso tem o que diz. Nesta rasura de vontade, nada importa Seguro, nada esperar de Passos.
Hoje foi um dia em que se escreveu um «pequeno tratado das figuras». Leia-se com cuidado e conclua-se da superioridade de quem sabe escrever  a hora.
.



[1] Manuel Gusmão, Pequeno tratado das figuras, Porto, Assírio & Alvim, 2013.

2013-06-12

O país de Luís Amorim de Sousa - o nosso...


Sobejamente conhecido no meio cultural português e guarda-mor da glória póstuma do poeta Alberto de Lacerda, Luís Amorim de Sousa tem 75 anos. E diz assim na página derradeira do último JL:

«Não sei se é uma despedida. Vou voltar para a Inglaterra. Não vou interromper nada, nem tentar começar nada de novo. Vou-me embora. Quero ir. Vou por razões pessoais. Família, amigos, rotinas. Deixar para trás certas coisas a que não me habituei e retomar outras a que estava habituado. E vejo-me a fazer listas do que me vai fazer falta - a língua acima de tudo - e do que deixo sem mágoa - tudo o que não me faz falta.»

Entre o que vai fazer falta - a língua tão maltratada pelos acordistas - e o que não faz falta, há um abismo - esta erosão de nós que é fragmentação.
_____________
O trecho citado aparece datado («Cascais, 23 de março, 2013) e surge na p. 36 do JL nº 1114. 

2013-06-11

Cavaco limitado

Não olhando o real, Cavaco proclama-se euforicamente limitado. E isso nada tem de histriónico.

2013-06-10

Artaud moderno

Suicidado da sociedade, a razão de Antonin Artaud não tem prisão no diagnóstico certeiro sobre o abismo que olhamos: 

«um mundo que dia e noite, e cada vez mais, come o incomestível
para levar a sua má-vontade aos seus fins».

E esta escatologia deve ser ouvida.
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Referências: Antonin Artaud, "Van Gogh, o suicidado da sociedade", Lisboa, assírio & alvim, 2004.

O 10 de junho visto por Artaud

Artaud diz viver-se a vida presente na velha atmosfera de crime organizado. Estávamos em 1947 e em diferente contexto. Mas há verdades que nos afundam. 

2013-06-09

aviso à literatura

Hoje toda a gente fala de literatura, principalmente aquela que não leu. Hoje muita gente escreve e quase não há literatura. Quem prefere ler o que gostaria de escrever?

Camões, hoje...

http://www.publico.pt/n1596828

2013-06-08

um dia o dia

será um dia o sinal
um grande sol oral
dizendo a pele o veio
todas as águas vindo
contra esta fogueira.

será um dia o sinal
um arco de versos
devindo liberdade
na corrente do sangue
nas sombras do fanal.

será um dia o sinal
uma certeira serpente
cantando na boca
os suaves mistérios
de todos os azuis.


será um dia o dia.

2013-06-04

"A céu aberto" de José Tolentino Mendonça


Vi esta tarde no mercado de Trajano
gatos enroscados às esculturas
de Richard Serra
pareciam despojos encontrados
no mesmo mar escuro
alheios à perda do mundo
e também, também isso

Não contam uma história
diria que ninguém os chamou
sinais uns dos outros - esculturas e gatos -
um conhecimento descobrem
de quanto vemos apenas


                                                                     para João Miguel Fernandes Jorge