2013-01-28

dos "Diários" de Al Berto -17


"E um dia, inesperadamente abandonaremos a casa e atravessaremos o horto". [p. 485]

Sem morada, todos os dias esperam outra bruma. Dentro do corpo uma chama aquece-te o olhar e só então a pele descerá à raiz da escrita. Pouco depois, os caminhos do sangue misturar-se-ão com a língua corroendo todos os muros. Os ossos não conseguem já pressentir a chuva de cinza junto aos pés. Vazia, uma casa reflete nos olhos tudo isto: o abandono dentro do horto, este sangue.

2013-01-27

dos "Diários" de Al Berto - 16


"Olhar para trás e soprar na cinza". [p. 445]

Cinéreas, todas as fronteiras rebentam na junção da pele. Parado no tempo, os flancos feitos de musgo anunciam-te a algidez das coisas. Como no mito, não olhes que vais olhar - a cinza aí entra nas vulgares carnações, sobe aos dedos e irrompe na água dos olhos. Há uma mandíbula em cada noite.

2013-01-24

[agora]


sem pai nem mãe
o meu corpo arde
solitário no mundo
abisma-se no vazio
e nada reclama...

combustível a voz
a tensão nos braços
a explosão de mim
assim feita no silêncio
tudo é mar nos ossos.

tudo me seja leve na pele
como invisível fio de teia
sem palavras nem gumes.

2013-01-17

poética acidental

um dia esta chuva não será a mesma
e nem a liquidez de tudo me será razão
um dia este frio que me dilacera a voz
será apenas água correndo para o mar
um dia virá em que toda a correnteza
ulcerará nos ossos nas estrias do marfim
e em que o poema brotará pelo crânio
como fotologia mórbida em catedral ruída
um dia todos os dias serão assim: poemas.

2013-01-08

Diálogos com poetas: Gastão Cruz, Fiama, Daniel Faria e Rui Pires Cabral

"Peso do céu que nunca dirá nada
como um golfo de morte um poço
em que não entra o balde que na casa
cortava outrora a escuridão da água".

A melhor poesia escreve-se assim. Gastão Cruz é um enorme poeta e um lucidíssimo crítico de poesia. Estes versos são a nossa crise de um país que já não é. Poço apenas, morremos a partir de dentro. Veem?

*

Às vezes há em mim o desejo de ser Fiama e poder dizer, sem mais:

"Monólogos das coisas silenciosas: 
entre a chave e a porta,
ou o poisar da mão.
Na mesa, a mão agudíssima.
A chave, o silêncio volta-a".

Entre mim e Fiama, há isto: a poesia.

*

Procurar, procurar sempre. Agudeza de sentidos, sensatez na ação. Como ver um lugar sim? Na grande poesia de Daniel Faria, por exemplo:

"Procuro o lento cimo da transformação
Um som intenso. O vento na árvore fechada
A árvore parada que não vem ao meu encontro.
Chamo-a com assobios, convoco os pássaros
E amo a lenta floração dos bandos. 
Procuro o cimo de um voo, um planalto
muito extenso. E amo tanto
A árvore que abre a flor em silêncio".

No silêncio seremos.

*

Deceptivos, os novos tempos apresentam-se vorazes. Acreditar na melhor sensibilidade é preciso. Que refrigério os nossos poetas se comparados com outros atores nas nossas vidas! Lembro, por exemplo, Rui Pires Cabral. Assim:

"A floresta que conduzia à igreja está debaixo
do cimento - não a ouves respirar? Tudo o que cresce
sobre a terra tem a mesma vocação, as casas, o passado,
o corpo em todo o caso: qualquer coisa o segura
desde o princípio. E as praças que estiveram
ao fundo da noite uma vez
é para onde caminhamos a vida inteira".

Fabuloso texto, mostrativo poema de um poeta fundamental...

2013-01-04

Diálogos com poetas: Sophia, Tolentino Mendonça, José Agostinho Baptista e Manuel Gusmão

"Quem poderá deter
O Instante que não pára de morrer?" - Sophia dixit. E eu ouço.

*

"Podia morrer por uma só dessas coisas
que trazemos sem que possam ser ditas".

É José Tolentino Mendonça quem diz. Aproximo-me e calo-me. No silêncio sonho onde morro.

*

"Ninguém me visita, 
ninguém sobe as minhas escadas de pedra
nestes dias de Inverno,
neste país de medo". 

Arrebatadoras, as palavras de José Agostinho Baptista são um lugar único. Neste país de medo, não há escadas para tal fulgurância. Um poeta não se vende, nem arrenda o corpo à espera de um olhar. Quem olha assim não pode ser visto por qualquer um. Assim "as aterradoras inscrições de uma vida" que os desencaminhadores do poder ousam adensar...

*

"Ouvia outra vez a linguagem:
a montanha, desde sempre a linguagem - e era um mar
nascendo no visível do outro lado: o som do verde."

Assim o teatro poético de Manuel Gusmão. Magnífico, intenso, renovador, convidando ao silêncio, à pregnância auditiva. Como ouvir o outro lado?

2013-01-03

dos "Diários" de Al Berto - 15


"a memória dos dias por vir é uma pequena lâmina flutuante" [p. 376]

Sem memória ainda, uma lâmina inscreve-se no presente, em todos os sonhos. Indolor, circula no sangue aguçando o final do tempo com um esmero fulgurante. Dói nas têmporas o seu volume, os dois gumes roem sempre. Uma trovoada ecoa nos pulmões e toda a fisiologia recrudesce. É a noite todo um abismo em que me lavo no soro flutuante das lâminas. Pequeno um corte ainda é vida. Um pouco de luz resta, que outra bate já no lado opaco do fígado. Víscera a víscera se declinam os dias, esta estrada flutuante e tenebrosa. Sem memória, isso no coração.

2013-01-02

Arroz de sangue: sobre "Gaibéus", de Alves Redol



Arroz de sangue: sobre Gaibéus, de Alves Redol

Acabei de reler Gaibéus durante a minha estadia natalícia por Londres. Desatento à vulgata sobre os possíveis defeitos de uma obra iniciadora de um fulgurante caminho literário, a que nem o próprio Redol escapa, este romance é bem uma certa “aquisição para sempre” a que alude Xenofonte.
Para sempre há de lavrar no sangue esta gesta sobre o trabalho desprotegido e explorado – da diáspora beirã até às lezírias ribatejanas escoa-se o rito da sazonalidade. E nunca o protagonismo coletivo de uma massa de trabalhadores assalariados a breve termo despermite uma escrita laboriosa e superior, sugestiva e poética, instituidora de um “modo novo” de captação artística do trabalho e da sujeição. A aproximação justa que Óscar Lopes (1989) divisa entre estes ranchos laboriosos e o coro da antiquíssima tragédia ática afirma ainda aquilo que, não sendo inconfutável, representa um particular e poético olhar, que, como se soube, veio para fazer caminho e abrir uma porta.
É superior ainda o passo alegórico da doença e cansaço de ti Maria do Rosário, que, em transe de sono febril, entrevê a trituração da sua pessoa e dos restantes trabalhadores em sanguinolento arroz para o patrão comer.
E nem a admonição redoliana inicial de estarmos perante um “documentário humano” e de o romance não pretender “ficar na literatura como obra de arte” nos dissuade da óbvia conclusão de estarmos perante um dos fulgurantes romances portugueses de todos os tempos.
É, por último, uma obra literária que insta a que despertemos, como o anuncia, por exemplo, o magnífico final: “E o inverno vinha aí…”. Assim o cuidado no presente que somos.
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Óscar Lopes, "Gaibéus - uma leitura (uma lição) cinquentenária", in Alves Redol, Gaibéus, Lisboa, Caminho, 1989. Edição comemorativa dos 50 anos da primeira edição (1939-1989).