2012-12-26

[museologia]

não me falem da pedra de rosetta
dos mármores de elgin do tesouro
de oxus da máscara de tezcatlipoca
das esculturas amaravati e de tudo.

deixem-me com o funéreo barco
do sutton hoo com o homem de lindow.

no centro de tudo a pele a plena explosão.

2012-12-25

Natal em Londres

É Natal em Londres. Um breve raio de luz anuncia um país português que teima em existir, com todo o medo disso. Na Tate, Pedro Cabrita Reis ilumina o nosso orgulho. Ainda breves, são luz sem constelação os nomes de Vieira da Silva e Paula Rego. Um porto e um madeira talvez aqueçam a pequena festa. É Natal em Londres e não há sombra do mistério em Portugal, diz-me um corvo desasado sob espessa nuvem. Em Portugal haverá natal um dia?

2012-12-24

[no tamisa o coração]

há um fio rubro que nada no tamisa
lento abre-se à luz rodopia na água
e entra pela torre fabril da  alta tate.

um cavalo líquido afunda - é o sangue.

2012-12-23

[torre de londres]

[torre de londres]

da lapela da árvore onde dormem
um corvo e uma asa
escorrem para a neblina da manhã
esquecendo todo o sangue aí perdido.

não há perdão para o tamanho da injustiça
e só estas pedras ousam calar o sofrimento
que entram por íntimo poro até ao cérebro.

opaco todo o ardor se ouve ainda nesta mão
aqui onde todos os líquidos são escuro sangue.

2012-12-22

"O Natal em Londres" de Almeida Garrett



XXXV

O Natal em Londres

Anathema sit.
Conc. Trid.

Que Natal este! - sempre sois herejes,
                      Meus amigos Ingleses.
Bem haja o Santo Padre, e as suas bulas
                      De fulminante anátema,
Que excomungou estes ilhéus descridos:
                      Oh! nunca a mão lhe doa
- Ver na minha católica Lisboa
                       As festas de tal noite!
Sinos a repicar, moças aos bandos
                      Com a bem trajada capa,
E o alvo teso lenço em coca airosa,
                      Donde um par de olhos negros
Dão as boas festas ao vivaz desejo
                       Do tafulo devoto
Que embuçado acudiu no seu capote
                      À pactuada igreja!
Natal da minha terra, que lembranças
                      Saudosas e devotas
Tenho de tuas festas tão gulosas
                      E de teus dias santos
Tão folgados e alegres! Como vinhas
                      Nos frios de dezembro
De regalados fartes coroado
                      Aquecer corpo e alma
Com o vinho quente, com os mexidos ovos,
                      E farta comezana!
E estes excomungados protestantes,
                      (Olhem que bruta gente)
Sempre casmurros, sempre enregelados
                      Bebendo no seu ale,
E tasquinhando na carnal montanha
                       Do beef cru e insípido!
Pois os Christmas-pyes, gabado esmero
                        De sarmatas manjares!...
Olhem estas pequenas: são bonitas;
                         Mas que importa que o sejam
Se das Graças donosas praguejadas,
                         Rústicas e selvagens,
Nem dança airosa, nem alegre jogo
                         De divertidas prendas
Arranjar sabem, e passar o tempo
                         Em honesto folguedo.
Jogar um Whist morno e taciturno,
                         Sentar-se em mona roda
Junto ao fogão, fazer um detestável
                         Chá preto e fedorento,
Sem ar, sem graça... - Oh madre natureza,
                         Quanto mal empregaste
A formosura, o mimo, as lindas cores
                         Que a tais estátuas deste!

                           Londres - dezembro de 1823
[Lírica de João Mínimo]



2012-12-19

dos "Diários" de Al Berto - 14


"Pressinto que chove, algures, dentro do sangue." [p. 359]

No velho pátio da casa de infância a água da chuva desaba inclemente. Sobe dos pés à memória e infiltra-se no sangue rapidamente. Em breve, só uma recordação pisará a pele e disso uma mera pegada é indício. Todos os dias isto é o sangue, pressinto.

2012-12-16

dos "Diários" de Al Berto - 13


"às vezes sinto um grito subir de muito longe, dalgum lugar insuspeito, mas vivo e revoltado, de meu corpo." [p. 247]

Às vezes um grito emerge das páginas de Raul Brandão e Vergílio Ferreira, roendo-nos dias a fio num íntimo inexplicável. Na chuva da noite, nesse silêncio opaco elementar, cavam-se gritos como cafés cheios e vividos. Explodem nas mãos os rios, o sangue cruza as azinhagas e toda a morte é um sopro nos tímpanos. A um canto nasce ondulante um grito. Outro nasce neste silêncio que tão bem ouço. Tal a distância entre o que é e o que poderia ser.

2012-12-12

[o corpo aos peixes dou]


um grande peixe azul irrompe de clara víscera
e mineral observa a limpidez conatural da chuva
o frio ágil esgueirando-se na juntura da virilha.

toda a luz da noite que ressalta nos telhados
é aviso sibilino sobre os abismos que aí vêm –
as escamas na obliquidade dos líquidos fendem?

os olhos pestanejam contra ventos feros  bestiais
porque  não haverá coroa luminosa sem margens
assim desenhadas nas tuas costas  como rosas…

e de rosas um corpo de mulher me fende pende
do fogo um cristal fundente ilumina estes dedos
te tocam como na neve o fogo cicia o murmúrio.

agora morro de ti e nesta árvore expludo a morte.


2012-12-10

dos "Diários" de Al Berto - 12


"não me enganes
deixa que o voo da ave repouse no fundo do rosto" [p. 155]

Para mim as palavras voam e caem sobre as mãos declinadas. Cavadas na pele, torrentes de barro trabalham sem repouso à espera que tu moldes  este corpo. E tu sabes e não me enganas, porque este voo é um fio de aço de que não te libertarás. Como um ouriço na estrada o perigo não existe, se não souberes que o animal o é e que no asfalto sopram ventos animais.
No fundo do rosto, eis uma ave que repousa já - o coração nas mãos pulsa e queima todas as lágrimas. Eu agora um rio. 

2012-12-09

dos "Diários" de Al Berto - 11


"Aves de vidro entre a pele e as unhas." [p. 126]

Entre a pele e as unhas isto, um imenso rio de aves, todo o azul possível entrando nos pulmões e uma poucas nuvens de aço junto ao coração. Aí, nessa sombra, toda a virtude é possível, porque nenhumas portas o cercam. Aberto, o cerco não o é e os fios de luz, sempre libertos, correm no sangue até ao íntimo estuário em que propulsam.
Sem família, sem tribo a que pertença, não sei, como pensava Vergílio Ferreira, se a velhice é um sobejo. Mas acho que sim. E por isso que uma ave rediviva repouse nesta mão que estendo. Minha como tua, estendo. Fundo.

2012-12-07

O conhecimento da dor



O conhecimento da dor

Carlo Emilio Gadda (1893-1973) é um caso indesmentível de fulguração literária. Com valor universal, pois, não espanta a fácil aplicação de um trecho de “O conhecimento da dor” (1963) ao nosso caso atual (quando digo nosso, quero dizer deles, dos do “sacrossanto” poder corrupto e culpado do nosso estado que já não está…), quando o autor contextualiza assim o seu mítico país de escassos recursos Maradagàl:

“… considerando o facto de que eles já suportavam os impostos e eram obrigados a múltiplas contribuições, cuja soma total, em alguns casos, atingia  e, até, superava a valor do minguado rendimento que a propriedade rústica produzia, isto é, cada ano em quatro, quando não havia seca nem chuva persistente para dar cabo das sementeiras e das colheitas, nem as invadia toda a espécie de pragas.” [tradução de Nunes Martinho e Ernesto Sampaio (Carlo Emilio Gadda, O conhecimento da dor, Lisboa, Editora Ulisseia, 1966)]

Toda a espécie de pragas caiu sobre o nosso país. Por exemplo, Coelho e Gaspar, que não sabem quem é Gadda e não sabem a quem perguntar. O Pedro e o Vítor que fizeram de Portugal bem pior que Maradagàl. Até quando aguentar-se este conhecimento da dor?


2012-12-06

dos "Diários" de Al Berto - 10


A escrita é isto - um compromisso. Não ceder a nada, às solicitações fáceis, ao automático, ao parecer, ao rendoso. Nada fazer para a politiqueirice que acha que a escrevinhação é presa fácil, coisa desprotegida, objeto à mão. Antes um escarro na palma dessas mãos.
Nada fazer que não tenha que ver com esta ética. Não quebrar. Antes nas águas um tronco indo. E fecho a porta.

2012-12-02

dos "Diários" de Al Berto: 9


"sossegai Averno branco onde pouso a cabeça". [p. 84]

Sem dor particular, a avernal atração vem das unhas até ao lago cordial. Aí nos afundamos, nesse fogo constante de incandescência. No ombro de Averno descanso, transparente, branco. E por ti ardo.