2012-03-02

"Uma faca só lâmina / ou: serventia das idéias fixas/", de João Cabral de Melo Neto


JOÃO CABRAL DE MELO NETO

(OU: SERVENTIA DAS IDÉIAS FIXAS)

Assim como uma bala
enterrada no corpo,
fazendo mais espesso
um dos lados do morto;
assim como uma bala
do chumbo mais pesado,
no músculo de um homem
pesando-o mais de um lado;
qual bala que tivesse um vivo mecanismo,
bala que possuísse
um coração ativo
igual ao de um relógio
submerso em algum corpo,
ao de um relógio vivo
e também revoltoso,
relógio que tivesse
o gume de uma faca 
e toda a impiedade
de lâmina azulada;
assim como uma faca 
que sem bolso ou bainha
se transformasse em parte
de vossa anatomia;
qual uma faca íntima
ou faca de uso interno, 
habitando num corpo
como o próprio esqueleto
de um homem que o tivesse, 
e sempre, doloroso 
de homem que se ferisse
contra seus próprios ossos.
A
Seja bala, relógio,
ou a lâmina colérica,
é contudo uma ausência
o que esse homem leva.
Mas o que não está
nele está como bala:
tem o ferro do chumbo,
mesma fibra compacta.
Isso que não está 
nele é como um relógio
pulsando em sua gaiola,
sem fadiga, sem ócios.
Isso que não está
nele está como a ciosa
presença de uma faca,
de qualquer faca nova.
Por isso é que o melhor
dos símbolos usados
é a lâmina cruel
(melhor se de Pasmado):
porque nenhum indica
essa ausência tão ávida
como a imagem da faca
que só tivesse lâmina,
nenhum melhor indica
aquela ausência sôfrega
que a imagem de uma faca
reduzido à sua boca;
que a imagem de uma faca
entregue inteiramente
à fome pelas coisas
que nas facas se sente.
(Uma faca só lâmina / ou: serventia das idéias fixas/, 1955)

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