2012-03-21

"poema simples" de António Franco Alexandre, em dia dito da poesia


Um dia, coube-nos em sorte a publicação do texto que se segue, sem mais palavras.

António Franco Alexandre

poema simples
Assim como o tempo passa
já posso ser o que sou
breve chuvisco de tarde
nublado pela manhã
sol em neve declinado
seco mar fresca aridez
Não deixo nem testamento
nem memória do que vi
as vozes que me habitaram
os corpos que me queimaram
não sei que sorte tomaram
nem que levaram de mim
É certo, julgamos sempre
olhar de frente o futuro
mas o que vemos é só
um braço de rio parado
muro de gruta pintado
a fazer vez de presente
Na linha do horizonte
perdeu-se outrora um navio
em terra fiquei deixado
ferido de sangue frio
de mãos e pés amarrado
à lembrança, mas de quê?
Fiz de palavras caminho
altas palmas o meu céu
amassei o solo escuro
só sol e mar me criaram
fiéis ao simples acaso
de algum dia ter nascido
Finalmente o fim do mundo!
embora seja seguro
que outro mundo há-de seguir
enquanto rodem as rodas
em perpétuo movimento
do inexorável motor
Amor amado desejo
vontade de outro não eu
rumor do corpo habitado
pela confusa visão
no olhar do bem-amado
de um sonho que não é meu
Desde cedo habituado
a ser o eco calado
de cego narciso, sem
nunca encontrar na mensagem
mais do que a pálida imagem
do seu jeito de ninguém
Às vezes, sobre uma cama
terrestre, de lençóis nus,
na formosura de um rosto
seja seu ou seja de outro
vejo o mundo ilimitado
que a sua cegueira vê
(Outra estória é a de orfeu
pois rimador aqui estou:
depois do frívolo idílio
no inferno, aconteceu
a pequena audácia trácia,
que virgílio não notou)
Por isso pouco me importa
se só vejo simulacros
por trás de muros compactos
se a idade me trava o passo
e cada hora me traz
uma volta mais no laço
Se sou apenas banal
e às vezes vos desagrado
rimando com mau efeito
é defeito de querer
dizer o que o corpo diz
só no seu eco perfeito
Por cada dia que passa
fico mais jovem e sábio
tal qual a mulher barbada
arrasto gentes à praça
escarnecido, culpado
de desafinado lábio
Nenhum símbolo me ocorre
nem sinal ou signo extremo
só do medo me arrependo
que teve tudo o que quis
do resto do que aprendi
me serve saber quem temo
Serve saber que serviço
me talhou desde noviço
que palavra humana quis
tomar-me por aprendiz
e logo desde o começo
justo preço me cobrou
Este de ser sem juízo
sem cautela premiada
e dedilhar no meu verso
em prejuízo da fama
o reverso da canção
que me foi encomendada
Este de sonhar em mim
um infame pesadelo
e de estar perto do fim
cada vez que recomeço
ser o servente delfim
em ausência permanente
Sentir na boca o degredo
na tua boca beijado
abandonar-te em segredo
a uma esquina quebrado
no mais ser o bom atleta
que nunca cortou a meta
Ó campos feliz paisagem
ou cenário acidental
da minha verdade toda
fica o sumário brutal
ter este rosto de tinta
e nenhum outro real
Poucos conhecem a infâmia
do melhor do que há em nós
ou a vergonha cansada
de ter ainda outra voz
em rima pobre sem nexo
nem louvor na embaixada
Do nosso amor fica sempre
um gosto a coisa deixada
para os mistérios do sexo
como roupa desleixada
só eu sei como te deito
na minha mão debruçada
Só eu sei da tua boca
o orifício encantado
o sabor a vento fixo
no ombro de asa rasgado
e o rastro tenso que fica
dos joelhos nas axilas
E no entanto não sei
de noite como te chamas
parece-me bem ouvir
outro sempre diferente
nome, quando nas chamas
se arrasta a musa decente
Mudas de rosto, de idade
mudas o gesto da mente
se abrindo as mãos me devassas
e em mim resta de quem és
sem memória nem promessa
um oco vácuo demente
Sou-te fiel mude embora
nome corpo rosto e acto
sei-te na sombra o exacto
rumor do tempo previsto
assim é que nasces e
mal me encontro me perdi
Agora, em ilha extrema
nativo náufrago eu
pintado de sexta-feira
escavando em tronco duro
planeio fugir de mim
na folha do mar ou fundo
Confundir-me com as velas
em leve teia de espuma
ser a medusa que aterra
as redondezas da terra
ouvir sem mastro nem pejo
o desejo da sereia
Talho na rija madeira
da melhor árvore que havia
a que mais fruto nos dava
mais fresca sombra deitava
na sombra muito ligeira
que como um véu nos vestia
Com a foice da serpente
ó instrumento imperfeito
afeito a carne macia
mas que nos basta na estória
assim contada à maneira
de vaga memória pia
A esse tronco é preciso
agora vir a contar
doze anos estive preso
em inferno paraíso
no jardim de contos feito
e sem fruto proibido
Eu era, se é que era,
mais um aroma no ar
a voz ao longe que espanta
quando cessa de cantar
ou outra imagem qualquer
capaz de a ti te acordar
Aí à beira do mundo
com os teus dedos de veludo
a correr, a tropeçar
no sentido imaginado
dos teus sentidos já lassos
de tão pouco enlaçar
Telegrafa-me depressa
enquanto não cessa a obra
de talhar, de amanhecer
apenas para que peça
um pouco de barro ou dessa
matéria que faz querer
Tocá-la senti-la tê-la
entre as mãos a acontecer
mas sem peso e sem figura
só emoção de tecer
o resto humano da dobra
que o tempo leva a dobrar
Noite e dia escavo e corto
não sei bem que forma faço
a foice foi de presente
à medida do meu braço
e quando repouso sonho
com o meu barco na corrente
Bem pequeno pode ser
pois me basta um lugar
vou deixar na ilha toda
a minha corte vulgar
de ti levo o pensamento
do teu nome singular
Vou partir para oriente
tomo o rumo das estrelas
com versos farei as velas
para o vento dominar
vou ver se existe outra gente
outro lado do pensar
Desejo ventos, procelas
de antigamente rezar
altas ondas que ameacem
as nuvens até no céu
quero ver se me arreceio
se me ponho a babujar
Se vejo a dama mesquinha
cortês a vou a saudar
minha antiga companheira
tua carga é bem ligeira
podes levar-me, não trago
bagagem nenhuma, vê
Só uma flauta, um caminho
que nos mapas se não lê
um rosto de linho velho
sem razão e sem porquê
mas não te iludas eu quero
à outra margem passar
Subir ao monte que avista
muros de cego cristal
tectos de palmas abertas
ao céu azul mineral
e ver os degraus da casa
desde a terra até ao céu
E ver os degraus da casa
como uma corda entrançada
de corpos letras papel
deixar nos muros do templo
a marca da minha mão
em testemunho fiel
Outrora tinha receio
de me perder pelo meio
da invisível floresta
onde o inimigo espreita
com tigres olhos de lume
e face dura de cão
Hoje o que temo é ter feito
letras tortas no meu chão
ter hesitado no leme
ser duro de coração
ter errado o peso justo
e dito não, dito não
Por vão cuidado da rima
ter descuidado o legado
que devia fazer meu
e não ter usado a lima
dos versos para dizer
ao mundo imundo o seu fim
Vou ver os degraus da casa
cedo na luz de oriente
sem receio de outra gente
nem da garra do leão
de mim é que tinha medo
agora já sei quem sou
(esta só é a lição)
Na praia já se começa
a ver o verde do mar
e se levantou o grito
das aves relógio aflito
descido ao sono profundo
que a sonhar se detém
Ao ar claro se evapora
um resto vago da aurora
que só a noite contém
tu bem sabes quanto custa
o preço desta demora
na morada de ninguém
Vou partir deixar a vida
nos seus crivos entretida
riscar de todos os livros
as armas que o tempo tem
quero ir a esse tempo
onde renascem os vivos
Na boca me deitem terra
para não morrer no mar
cubram de seda esta água
tão pouca que me bastou
e deixem-me pronta a mesa
para quando regressar
De ti nunca me despeço
minha sede meu senhor
tu que vês o que não digo
e o que não faço prevês
trazes a graça contigo
e o sentido que me dês
Da tua cegueira sou
desastrado escriturário
para te servir nas artes
não me troquei nem vendi
e só por erro servi
outro mando do que o teu
Também agora não peço
a garantia de autor
(para que no editor
assírio e alvim se publique
peço ao franco antónio que
tudo a seu cuidado fique)
Nem a taça nem o busto
nem o atleta robusto
que me leve em sua mão
nem o tesouro da serra
e o horizonte de terra
à medida do meu chão
Na verdade nada peço
senão a palavra que
me liberte desta ilha
me tire do pulso a anilha
e me destape do poço
que me demora o embarque
Quero ver a cor que tem
a tela do outro lado
e a razão do teu louvor
quando na obra acabada
de tudo quanto fizeste
disseste a morte melhor
Será agora que vejo
nascer o sol verdadeiro
o terrestre, que me acorda
e me liberta da corda
do primeiro pesadelo?
será que agora desperto
Numa alfândega distante
diante do sábio mono
e sua dama mesquinha
a queimar lenha no forno
onde se cozinha o novo
modo de assar o vizinho
E me acusam de ser
avesso e pouco cortês
e permitir a nudez
sem nenhuma metafísica
mas com cem sentidos bem
fisicamente despertos
E de ter nascido com
extraterrestres avós
de usar amor ao contrário
e ter feito este sumário
dando sentidos à voz
sem talento e sem pudor
Não me defendo sequer
curioso do tormento
original que inventaram
enquanto o lume se acende
verter-me em sórdido inferno
em lugar do happy end
Mas por força do desejo
e seres demónio aprendiz
acontece desta vez
ao contrário de moisés
que tu estás onde te vejo
eu estou onde não vês
Vem-me levar, extranave
desde Sura a Pumbedita
os dois extremos da terra
que já me cansa bater
à porta fechada rente
de alheia casa qualquer
Agora seria a hora
de uma grande conclusão
uma razão que pusesse
todos os dados na mão
mas o meu poema simples
tem rima, não tem razão
Outra que a dura presença
do teu rosto contra o meu
no lume que nos mistura
e se transforma até ser
a chama móvel que move
as roldanas do destino
Servirá de hobby-horse
pois traz em código morse
as evidências do mito
verás como o indecifram
enquanto mordo nas veias
uma agulha de infinito
Meu terno e bom capitão
por ti tudo tenho escrito
e diz-se que é longo o tema
para tão curto poema
mas se me deixas a mão
vou ali e tenho dito.


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