2011-01-31

tsadikim

no princípio era a peste a escuridão nas arestas do mundo
as ruínas sorvendo a palidez do dia as colheitas destruídas
nos campos devastados o trigo derruído a escassa água
rebentando nos pés pântanos nascentes no vigor dos ossos
amaciando a pele encarquilhando-lhe o veludo a parteira
hassídica entrando na alma correndo pelas veias do corpo
desfibrando intimamente a carne gume lâmina entrando
pelo tecto da sinagoga lugares e objectos dentro do sono.

2011-01-29

O Dr. Rogério Seabra Cardoso disponibiliza, no hall da ESEN, a exposição por si criada "A saúde no final do século XIX e primeira década do século XX - A luta contra a tuberculose"


[fotografias de JCosta]

O Dr. Rogério Seabra apresentando a exposição por si criada, na primeira fotografia,  e, na segunda, ao lado do promotor do evento, Dr. Fernando de Gouveia e Sousa. Ambas as personalidades integram a Real Associação de Viseu.  

2011-01-28

poema para vergílio ferreira




no limite do horizonte nítido um barco passa
estafado debaixo do sol contra a montanha
um grito um corpo de mulher da noite rompe
sem vento eis a circunstância a minha vida
em faca romba afiando os gumes as lâminas
acerando no fio de azeite das águas correndo.

2011-01-27

vishniak

as memórias invadem o sangue e caem a pique no regaço.
dentro da velha casa ainda sinto o odor do licor das cerejas
rolando nas madeiras derrubadas no anisado das fotografias
como se a pele doméstica colasse à língua aos ossos fundos
e dos punhos só gavetas verdes destruídas pratas roubadas
em celulóide que revejo o horrível pogrom nos linhos crus
nos macios lençóis bordados um mar de sangue um licor…

2011-01-26

poema para paula rego


no rosto nem sulcos ou fungos
antes suaves aromas e brilhos
inefáveis que rompem os dias
e iluminam as noites de gris.
cedo cegonha vem aos lábios
da boca recebendo a prenda –
a barata de lispector irrompe
do céu da língua uma brancura
cobre a tela o ácido da saliva
limpa o óleo os olhos no chão
o alarme em nós mundo fundo
colar nos dedos é o riso de rego.

2011-01-25

abrigo

em primeiro a casa depois o sangue veio
explodindo nas veias as arestas das unhas
acidificaram-se na cor tártara da vida e tu
desceste ao limite à margem direita do rio
onde os túneis eram o corpo labirinto oco
de vielas torcicoladas ruas fantasmáticas
rugas nos dedos fundos dentro dos abrigos
camuflados nos músculos os subterrâneos
afundavam na carne encostavam aos ossos
e os animais dessedentavam-se no coração
no armazém da casa na fundura das costelas
uma fenda as formigas correm no dorso das
palavras rompendo na noite no brilho cavo
da grande artéria na praça do teu peito certo.

2011-01-22

ground zero

o ground zero aquece na noite fria
enquanto os vidros suam na linfa
destilando bebidas e conversas.
passa um ano e outro mais ainda
e da memória ficam braços pulsos
incêndios na boca e lume na pele.
o gelo corta as gargantas sem fel
risos e sorrisos queimam o mal
e todos declinam a sábia cantata
no lugar que é lugar porque é lugar.

2011-01-20

deslugar

fun vonen is a yid? – pergunta elisa na noite do tempo
porque a origem é a iídiche reserva a obsessão funda
de uma gesta antiga por um lugar de um não lugar…

2011-01-19

safo

nada se sabe desta vida e tudo assim se esclarece
no silêncio espacejado de lugares e pensamentos
que a artista esconde no corpo sem as conversas
normalizadas acto em sussurro como mitologia
percorrendo o sangue a pseudonímia da altura
o safismo da pele tanagrina o comunismo do ar
a indistinta maneira sefardita o papiro judaico
em emaranhado solene como estátua na praça.

2011-01-17

frase da noite

"Cínico é aquele que sabe o preço de tudo, mas não sabe o valor de nada."


                                                                                              Oscar Wilde

2011-01-14

misteriando

cixous rompe o silêncio e escreve kafka
rilke rimbaud heidegger e mais superlativos
sobre a estranha estrangeira alada na terra.
presa? não há grades para o mistério, ouve.

2011-01-13

brasil

marlene dietrich e woolf são meras dimensões
para fazerem de clarice tangível comparável…
quem diria que um pogrom incendiaria um país
quente misterioso verdamarelo desejabundante?

2011-01-12

cairo

ao longe a esfinge decepada contempla as areias
e o deserto invade os corpos secando o sangue.
nas mãos o quiromante fita as linhas tortuosas
definitivo concluindo da cordial pureza única.
da varanda do hotel a noite despenha-se longa
e o suor recorrente arrefece a morna suave pele
que se abre previsível no leito de todos os guias.

2011-01-11

abulafia

liberta-te das gangas e purifica os dedos
veste então as roupas e renova o coração
não deixes à míngua de velas anoitecer
dentro de ti incendeia o espaço vital aí
nesse lugar que conheces. percorre-te
então o corpo premindo as fundas teclas
tocando sem temor as cordas venais.
agora o coração voa e as asas nas mãos
bailam na brancura das nuvens no papel
breve deitado nas letras puras derramadas.
a escritura irrompe nítida e tu ardes ígneo
ser lacustre na linfa bebendo o fel e os dias.

2011-01-10

poema para lispector

em ângulo a beleza vem dos lábios
e suaves cabelos álgidos queimam
sobre os olhos dentro do lago a luz
espraia-se no dorso e em reverso
duas mãos e dois cisnes erectos
tacteiam o fulgurante milagre –
dos punhos a criação invade-nos
e nem a coroa de louros lhe resiste.

2011-01-06

2011-01-04

Requiescat in pace: morreu Júlio Cruz


Na morte de Júlio Cruz, não há palavras, só um silêncio retirado. Que descanse em paz...