2009-05-24

SOBRE UM LIVRO DE ANTÓNIO GIL: UMAS POUCAS PALAVRAS DE UM EDITOR SEM NOME

SOBRE UM LIVRO DE ANTÓNIO GIL: UMAS POUCAS PALAVRAS DE UM EDITOR SEM NOME

Afinal, não houve um regresso a casa, como nos poemas de Rilke. E ainda bem, porque as palavras de uma homenagem devem ser as dos agentes principais, as dos poetas, só eles merecedores do afeto vindo de dentro, do avesso da pele e do calor do sangue - e quantas vezes as palavras se tingem dessa seiva!

Quase sempre os poetas essenciais cruzam com editores desleixados e ausentes. Eu sou um caso, reconheço, até porque verdadeiramente a edição me coube por sortilégio do Autor e por genética criativa que abraço, que profundamente estimo. Nada sei, pouco sei, no entanto, sobre os corredores do comércio da mercadoria espiritual. E essa é uma falha que a mim se deve e nada tem que ver com o editado, que melhor sorte merecia para o seu Canto desabitado, livro que é canto - canto luminoso, sábio e euforicamente sombrio.

Canto desabitado é o primeiro e, para já, único livro editado pela revista Ave Azul, e integra a colecção “Coisa que não existe”, nomeação que persegue as fundas pegadas de Teixeira de Pascoaes. Considero-o um livro fulgurante e intenso.

Ler poesia e escrevê-la carecem de um “oeil vivant”, como o diz um Jean Starobinski. E desse esforço produtivo resulta uma lição adveniente do poeta checo Jan Skacel: a de que “O poema está algures lá atrás / Há muito muito tempo que lá está / O que o poeta faz é descobri-lo”. Tal olhar e tal capacidade superabundam em António Gil, como, aliás, já o terei dito aqui e na Biblioteca D. Miguel da Silva, in praesentia.

Canto desabitado biparte-se em ruído silêncio e em ecos. Estranhiza-se ainda no primeiro partimento, pela introdução do desvio opticografemático do itálico nos poemas 2, 14, 16 e 19. Abre-se em ostensivo fanal, ultrapassada a represa inicial de “ainda deve ser Outono”. E tal corrente aberta cruza o grotesco em eufonia aliterante e simbolista, para logo passar, mais sutura do que rompimento, para uma toada presencista e surrealista, com laivos cesarinos – leia-se, v.g., “árvores tortas descem, em câmara lenta, sob a neblina, estradas sombrias, ruas mortas” (p. 7). Antes, um pouco antes, iniciava-se o rito, em itálico, de um insalvífico homem e sujeito poético pensante que passa “sem família” pela vida admonindo e admonido da sua condição de perdedor isolado: “nada te salva ou resgata: // caminhas sem porto / sem ponto de partida // estás só meio-vivo na vida” (p. 6). Depois, um pouco depois, prossegue um desfile caótico de objectos e coisas constituídos aqui actores de uma ordem surreal, absurdamente metálica, assustadora e devastada. Apocalípticos, os sítios e os lugares afundam-se, negros e esventrados, enquanto a deflagração irónica toma o texto, criticando incisivamente as mundanas paixões e os novos poderes facilitadores. E entre o ruído da exterioridade e a porosidade interna, entre as duas condições textuais apresentadas pelo Poeta na primeira parte surge então um laço trabalhado por um mundo fulgurante de devastação e de devoração.

Desalento, silêncio e desmemória são, enfim, as ambiências espirituais de uma luta entre a liberdade e o servilismo, como o parece comprovar aquele indagativo passo que sobre o leitor age:

…mas como, como trocarias tu, tuas soberanas tristezas por vassalas alegrias, tuas imperiais fraquezas, por servis valentias, tuas nobres incertezas por escravas garantias? (p. 24)

Nem seria preciso pensar em Leavis e Steiner para dizer que todo o acto crítico é avaliativo e resultante de uma escolha. E aqui resta ainda dizer que este acto hermenêutico é singularmente único: quantas vezes, afinal, um editor colhe assim uma oportunidade de dizer umas poucas palavras sobre um amigo fundo que é desde há muito um imenso poeta e um habitante de uma casa que sinto ainda como minha, como nossa?

O texto vai longo e, como diz Bloom, nós somos “o nosso único método” de leitura. Nada do que pudesse eu dizer teria interesse sem um trabalho inicial que a todos cabe. Ler poesia e os poetas é amar. Sem decifração total, os ecos gilianos são uma espécie de metal fundente que tornam transparente uma arte poética originalíssima: na oficina, in medias res, como na melhor épica, o Poeta recolhe no sangue o fulgor que rápido sobe à pele, em si espalhando o alarme de três décadas de verbo iluminado. Em António Gil, imagem de hoje e de ontem que se me encrava, a poesia brota dos punhos e do fascinante, rápido e coruscante olhar. Em passos breves, aéreos, ouço sempre os seus passos na noite aberta no tempo. Fendente, um relâmpago cobre-nos o passado. E são palavras no sangue, doces explosões de luz, um riso plantado nas tílias do Rossio. Como esquecer o que é vivo, Gil? Como esquecer esse teu jeito indagador, profundo, tenso e solidário, a todos oferecendo um explicit textual tão iluminante e belo como o subsequente:

entre paisagens e noites de gasto esforço, de viagem em viagem, o escorço se fez curso, nas margens do vento, colho a vagem e a semente que recolhe ao solo que escolho. nele acampo e sonho a tenda que levanto: esse o campo, onde implanto o rebento que me reinventa e me suplanta… (p. 36)

Transformando-nos, bem se pode dizer que a poesia de António Gil prova existir a “fisiologia da leitura” entrevista por Manuel Gusmão: inscritas no corpo, as palavras do nosso poeta arrepiam e abalam. E assim fica tudo dito e tudo para cada um de vós, leitores, poder dizer.

É um arguto João de Araújo Correia quem, em interessantíssimo Dispensário linguístico, aconselha à brevidade para que se não desfeiteie a língua. Não fui breve, nem sequer cuidadoso, porque um livro bem escrito como este canto merece ser lido no melhor silêncio, por dentro do rumor das palavras.

Viseu, 17 de Maio de 2009,

50 anos que passam sobre a morte de Judith Teixeira

[Homenagem a António Gil, no dia 22 de Maio de 2009 - Escola Infante D. Henrique]

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