2008-12-09

Subjectividade provisória: uma tarde longe com George Steiner



Toda a compreensão fica aquém do objecto celebrado. E cada sarça ardente, assim dito o artista em imagem consabida, tem a glória que o destino preparar. Há acidentes que são acontecimentos. Há incidentes que são inscrição no centro opaco da noite. Um escritor pode ser mera errata da memória e ainda assim um importante e infeliz criador, com mérito e sem glória. Venham comigo a este abismo que é sempre espanto e novidade que permanece nova (peço desculpa pelo eco de Ezra Pound).

Um dia, de sol, iluminante de dizer o novo de sempre, houve mais Steiner em Portugal. Eu conto.

Esta é a memória de anos. Vinda da austeridade irrepreensível da Sala de São Pedro, na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. A temática proposta por Steiner, cuja valia é inadjectivável, despertava curiosidade acerada: “Near misses: the destiny of Portuguese Literature in English”.

Há homens que são destinos. Frágil, talvez demasiadamente velho e encurvado, o público espera ansioso as palavras redentoras. A apresentação de Aníbal Pinto de Castro esconde ainda um encolhido e quase trémulo judeu. Tímido? Nem perto disso. A hora chega e um outro homem, coruscante de olhos, de raciocínio rápido e com ironia arrebatadora, rejuvenesce agora naquele corpo há pouco distraído e encostado à idade cronológica.

A glória da literatura portuguesa no mundo anglófono, di-lo um nem sempre bem informado Steiner, deve a sua modéstia a um conjunto de incidentes e desencontros, e os não menos importantes serão a prematura morte de Roy Campbell (1901-1957), o pouco apreço que o canónico Ezra Pound manifestou relativamente a Camões e a colagem publicitária de Eça a Honoré de Balzac e a Charles Dickens.

Elegendo Camões como exemplo de centralidade incontestada, aprestou-se Steiner a elencar o conjunto de traduções de Os Lusíadas efectuadas na velha Albion desde 1655, por Sir Richard Fanshawe (1608-1666) até ao projecto desgraçadamente seminal do poeta sul-africano Roy Campbell, que acaba por morrer de desastre, perto de Setúbal, antes de traduzir o nosso poema épico. Entre a tradução de Fanshawe (admirada por Bowra e Tillyard) e o projecto camonianista de Campbell, estão as traduções da epopeia de William Julius Mickle (1776), Aubertin (1778), Thomas Moore Musgrave (1826), Livington Mitchell (1854), Richard Francis Burton (1880), Robert Duff (1880), Leonard Bacon (1950) e William Atkinson (1952), todas apresentando pechas mais ou menos importantes: a última surge em prosa e desvia os leitores do espírito épico evocado pelo verso; a penúltima talvez seja a melhor; a antepenúltima revela amadorismo e infidelidade textual; de Burton se diz que “burtonizou” o poema; a de Mitchell e de Aubertin não serão más; a de Musgrave não será boa; a de Mickle deturpa; a de Fanshawe é pioneira e importante, embora não possua o espírito heróico do original.

Da proximidade ao acidente é um instante e, no meio de sorte e desventuras, a desaparição de Campbell é uma tragédia que faz muita diferença. Mas mais. Melville dedica dois sonetos a Camões e um deles só tem treze versos. Mais azar se segue com o desenho de Blake com Camões cego do lado errado. É Pound, no entanto, que dá forte machadada no poder de irradiação do nosso épico no mundo anglo-saxónico ao “determinar” que Camões é um sintoma e não uma força que às vezes é poesia e quase sempre é “pompa vazia”. Este julgamento terrível e a fatalidade de Campbell são dois incidentes que são graves acidentes para a glória póstuma de Camões no mundo anglófono. E se tudo tivesse sido ao contrário, e Campbell tivesse podido levar a cabo a sua tradução do poema épico e Pound tivesse sido um entusiasta de Camões? Será que o mundo de expressão inglesa olharia para o nosso Poeta de modo mais atento?

Talvez outro destino, certamente outra força e diferente brilho. Igual apagamento acaba por sofrer o nosso Eça, sempre prejudicado pela mania das comparações, quando, afinal, era óbvio que o escritor português não era Balzac, nem Dickens, mas “ele próprio, com a sua grandeza de província.”

Segundo Steiner, vislumbra-se na última década um fulgor inusual em volta do caminho de Pessoa. Não espanta, uma vez que se trata de um escritor que pela sua força inventiva deve ser colocado ao lado de nomes como os de Beckett, Borges, Milosz, Nabokov ou Wilde. Aliás, Bloom insere Pessoa no seu The Western Canon, o que é indício claro de dias limpos a preencher.

Nestes acidentes, que são também atrasos à maneira do ciclista Armand Godot que sempre se atrasava e viria a ser eternizado por Beckett, há um tempo novo que se adivinha. Depois da nobelização de Saramago, um outro risco propõe Steiner: o de que tal prémio pudesse ter sido partilhado por António Lobo Antunes, “um romancista esmagador”. Ora, tal posição do ilustre crítico é a nota clara de que a nossa literatura atravessa um momento feliz. Longe, os acidentes quase já nem são. Leibniz defendia ser a música a álgebra de Deus. Possa cada um escolher o seu encontro com a literatura. Tenha em si o seu nome, caro leitor, e saiba ainda que o risco da escolha é bem menor do que o custo do acidente.

Voltemos à nossa literatura e aos seus nomes. Tantos nomes maiores mais ou menos conhecidos. Vou escolher. Quem alguma vez teve um dilema igual?

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