2008-01-26

"Afinal, o Papa discursou", por Jorge Almeida Fernandes ("Público", 20 de Janeiro de 2008)


O caso pode ser tratado como "cretinice" ou como manifestação do "espíritodo tempo". Os editoriais da imprensa italiana de quarta-feira, de esquerda ou direita, trucidavam os 67 professores que pediram o cancelamento do convite a Bento XVI para falar na inauguração do ano lectivo da UniversidadeLa Sapienza, de Roma. "Uma ideia doentia" (La Repubblica), "Venceu a intolerância" (Il Sole 24 Ore), "Derrota dos laicos" (La Stampa), "Derrotado país" (Corriere della Sera) ou "Em Roma o Papa não pode falar, na Turquia sim" (Il Giornale). O filósofo Massimo Cacciari, presidente de Veneza, declarou que os 67 podem ser "óptimos professores de Física (...) e outras ciências excelentes. Mas deram prova de absoluta cretinice política." Acrescenta: "A presença do Papa no interior da Universidade é oportuníssima." Quando, na terça-feira, Bento XVI cancelou a sua participação na cerimónia um professor exultou: "Vitória da autonomia" académica. Um estudante proclamou: "O papa retira-se com as suas divisões". No dia seguinte, perante a reacção da imprensa e de quase todos os quadrantes políticos, queixaram-se de "linchamento mediático".

O mundo político tem alguma responsabilidade. Afogados no lixo de Nápoles, na iminência de uma crise política e na véspera de uma decisão sobre a alteração da lei eleitoral, governo e oposição deixaram correr o marfim. Só depois de o Papa cancelar a ida à universidade, abrindo uma crise maior, é que o Governo Prodi acordou.

A génese do "incidente" merece ser resumida. Quem tomou a iniciativa foi um professor jubilado de La Sapienza, Marcello Cini, 84 anos, físico, ex-comunista dissidente, veterano do anticlericalismo. Os 67 professores (entre mais de 2000) são quase todos do seu antigo departamento. O protesto estudantil circunscreve-se a 300 militantes "antiglobalização" ou anarquistas (La Repubblica). A carta dos 67 evoca um discurso do cardeal Ratzinger, em 1990, em que este- citando o filósofo da ciência Paul Feyerabend - teria tentado legitimar acondenação de Galileu. É uma falsificação do que ele disse. Ratzinger discutia o "novo clima intelectual", as incertezas da modernidade sobre si mesma e sobre a ciência, de que as contraditórias avaliações de Galileu eram um sintoma.

Os 67 foram, aliás, acusados de não terem sequer lido o discurso. Por exemplo, a citação de Feyerabend é incorrecta - diz-se que foi tirada da Wikipédia. Pouco interessa. Interessante é a carta que Cini enviou ao reitor, publicada em Il Manifesto (14 de Novembro). Convidar o Papa para falar no 705º aniversário da Sapienza é "uma incrível violação da tradicional autonomia da universidade", pois uma lectio magistralis como ele fez em Ratisbona (Setembro de 2006) só deve ser feita em "instituições universitárias religiosas". O convite viola a"repartição de competências entre a Academia e a Igreja". Cini denuncia a "bela coragem" de Bento XVI para apagar os crimes da cristandade. Mas o que verdadeiramente o enfurece é a persistente vontade do"ex-chefe do Santo Ofício" em discutir as relações entre fé e razão. "Mudou de estratégia. Não podendo já usar as fogueiras e as penas corporais [daInquisição], aprendeu com Ulisses. Utilizou a Deusa Razão dos iluministas como Cavalo de Tróia para entrar na cidadela do conhecimento científico e pô-la em ordem."

O que aparentemente o perturba em Ratzinger é ele ser um intelectual. A querela do laicismo pode ser lida em diferentes geografias.A Turquia ilustra um paradoxo. A Constituição está a ser revista. Os supostos "islamitas" do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP), deErdogan, querem abolir o ensino religioso nas escolas públicas. Os"laicistas" opõem-se. Aqueles querem suprimir a proibição do uso de lenço islâmico nos espaços públicos. Os outros denunciam isto como atentado à"laicidade". Para já, ninguém ousa tocar na Direcção dos Assuntos Religiosos, que controla o culto em todos os seus aspectos.

Ataturk instituiu, no fim dos anos 1920, um modelo de Estado laico inspirado no francês. O ensino obrigatório da religião (sunismo hanefita) é muito posterior: foi imposto pelos militares "laicistas", após o golpe de 1980. Tratava-se, na altura, de travar a expansão do marxismo... através do islão. O AKP quer reformular a lei da separação, de forma a que o Estado deixe decontrolar a religião e esta tenha livre expressão no espaço público. Este é o centro do debate, que revela não só duas concepções da relação entre Estado e religião mas também uma luta pelo poder, entre a velha elite kemalista e a nova "burguesia piedosa".

Nos "países católicos", designadamente nos latinos, domina uma dinâmica diferente. Há fortes tensões entre os governos, largos sectores da sociedade civil e as conferências episcopais, visíveis na Itália e, sobretudo, em Espanha. As recentes declarações de Sarkozy, atacando um laicismo radical que quer "cortar a França das suas raízes cristãs", anunciam novo foco de crispação. É um puzzle. Por um lado, grande parte dos próprios católicos não se revê na Igreja em matéria de costumes. Por outro, a acelerada secularização da sociedade está a produzir um crescente relativismo moral. Em contrapartida, a religião ou o espiritual ganham terreno com o fim das grandes utopias, como o socialismo ou o progresso (Bruno Etienne). É neste quadro que regressa à cena - inclusive em Portugal - "a religião laicista", o velho anticlericalismo ou a "catolicofobia" de que tem faladoVasco Pulido Valente. É útil voltar atrás, ao debate de 2004 entre Ratzinger, então cardeal, e o filósofo alemão Jürgen Habermas, um "ateu metódico". Para este, o debate coma Igreja é incontornável na questão dos valores. O cristianismo, diz, é o fundamento último da liberdade, dos direitos humanos, da civilização ocidental: "Não dispomos de opções alternativas. Continuamos a alimentarmo-nos desta fonte. Tudo o resto é palavreado pós-moderno." Perante o rolo compressor da globalização, os Estados liberais devem salvaguardar"os seus recursos culturais e morais, dos quais a religião faz parte". Habermas citou o filósofo político E.W. Bockenforde. "A Igreja não deve intervir directamente no domínio do Estado, na legislação ou nos poderes executivo e judicial. Mas é preciso lembrar que, previamente à ética de facto preconizada pelo Estado para os cidadãos, existe um ethos pré-político. O Estado secularizado deve submeter-se às normas que o precedem. (...) A Igreja tem o direito e o dever de se referir às normas fundamentais que decorrem da própria essência do ser humano."

Quase esquecia: afinal, o Papa "falou" em La Sapienza. O seu discurso foi lido por um professor, a encerrar a cerimónia, longamente aplaudido. Dizia que La Sapienza é uma universidade "laica", livre da "autoridade política e eclesiástica".

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