2007-10-14

"O Panteão da Memória", por Vasco Graça Moura ("DN" de 10 de Outubro de 2007)


Num tempo e num lugar de descasos sucessivos e clamorosos em relação à cultura, justifica-se plenamente tudo quanto contribua, mesmo que a título póstumo, para chamar a atenção para uma obra de importância cultural inegável. A trasladação de Aquilino Ribeiro para o Panteão Nacional não é todavia a melhor homenagem que se poderia ter-lhe prestado e o autor de O Malhadinhas não ficou a ganhar muito com isso. Não é de crer que a pompa cívica dos rituais de Estado lhe tenha trazido mais leitores e essa é que seria a consagração essencial.
É-me indiferente que Aquilino tenha ou não pertencido à Carbonária, ou tenha ou não participado no Regicídio. Cita-se o que escreveu em Um Escritor Confessa-se, mas as especulações podem também prender-se com a interpretação excessiva de uma página do cap. XIII de Lápides Partidas em que o narrador reconhece ter desejado a morte de D. Carlos. E só neste sentido é que ele diz "que ninguém o saiba, mas eu ajudei a matar o rei, confesso-o aqui à mesa da consciência".
O que não me é absolutamente nada indiferente é que ele tenha sido um grande escritor da nossa língua. Se há aspectos mais frágeis na sua obra (e ocorrem sobretudo quando ele trata a burguesia urbana), há nela também muitos momentos verdadeiramente geniais: Aquilino inventou prodigiosamente a Natureza e o mundo da província, os homens e os bichos, as paisagens e as plantas, as vistas, os sons, os cheiros, os sabores e as texturas da ruralidade profunda de um pequeno país chamado Portugal.
O panteão para os grandes criadores da cultura é o da memória. É nele que está Luís de Camões, cujas ossadas só muito improvavelmente se encontram nos Jerónimos por tudo levar a crer que houve um equívoco quanto ao lugar de onde foram exumadas no século XIX. Camões figura nesse panteão da memória (onde também quem não o leu ajudou a colocá-lo...) não apenas por quanto escreveu, mas ainda por ter acedido ao estatuto muito mais complexo de verdadeiro mito identitário. E é na memória que quase todos os vultos maiores da cultura portuguesa (e afinal não são muitos) lhe fazem companhia. Suprema e póstuma ironia, os restos mortais de Pessoa, também nos Jerónimos, começaram por não caber na urna que tinha sido destinada para o efeito...
Recentemente, António Lobo Antunes publicou na Visão uma crónica extraordinária e comovente sobre Miguel Torga. É um dos melhores textos que eu já li sobre Torga e, para o que estou a dizer, creio que se trata de um bom study case. Lobo Antunes fala da sua própria experiência vivida, das marcas que lhe ficaram das suas juvenis incursões torguianas e do inevitável distanciamento que, enquanto escritor, veio a ganhar quanto à obra dele. Mas o seu funcionamento da memória envolve o autor de A Criação do Mundo numa manifestação de afectuoso respeito e de gratidão plenamente assumida pelo enriquecimento que a sua obra lhe tinha proporcionado e pela sua profunda e honrada ligação a Portugal.
O panteão da memória é exactamente assim, interactivo com o que somos. Vai-se lá parar por um juízo que a sociedade e o tempo filtraram selectivamente. Funciona, disponível e fecundo, como condição de identidade e de consistência. Dá-nos uma razão de ser. E requer menos pompas oficiais do que bons programas escolares.
Ora acontece que os programas escolares têm vindo a esvaziar, intencional, equívoca, progressiva e metodicamente, o panteão da memória. Não falam nem querem que se fale de quem o ocupa de pleno direito. Não apetrecham os seus destinatários com os instrumentos mínimos necessários para que eles compreendam a obra de quem lá está. Apostam no esquecimento e agora, potenciados com o novo-riquismo dos recursos da tecnologia, é de recear que apostem ainda mais.
A 5 de Outubro, o Presidente da República recordou o ideal educativo do regime iniciado em 1910, apontou a escola como base da verdadeira inclusão social e do desenvolvimento e sublinhou as responsabilidades, tanto do Estado como da sociedade civil, no tocante à Educação.
O panteão da memória é uma pedra angular desse sistema em que todos somos responsáveis. A escola não pode ser transformada em panteão da... desmemória!

1 comentário:

isabel mendes ferreira disse...

desmemória?



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bjo.