2006-06-25

coluna de Agrigento: sobre o viseense António Nunes de Carvalho

Ouve-se ainda a canção de uma grande e deslembrada vida. Vinda do interior da cidade, do pulsar visceral mais íntimo, a voz ressoa sempre desde o centro mais sagrado. Esta fábula corre dois séculos e conhece o epimítio: que os filhos da terra abandonarão a memória e serão mera legenda. Contra o destino já traçado, algumas e importantes vozes se foram levantando, desacomodadas e iluminadas. No fogo da decisão, ninguém favorece mais os verdadeiros feitores da pátria. Só o tempo e os verbos desobrigados lutam contra a fatalidade. E digo José Júlio César, Alexandre de Lucena e Vale, Alexandre Alves e Júlio Cruz. E digo que se deve ser fiel à justiça.
António Nunes de Carvalho da Costa Monteiro de Mesquita nasceu, a 16 de Junho de 1786, na cidade de Viseu, naquela casa quinhentista da Rua Direita, ocupada, desde há anos, pela farmácia Mouro. Destinado pelo pais à vida religiosa, ei-lo matriculado desde cedo no Colégio Oratoriano de S. Filipe de Nery, instituição em que revelará brilhante inteligência e invulgar apetência para as humanidades clássicas. Tal genialidade permitiu que apenas com 18 anos fosse nomeado professor de Latim. A fama de Nunes de Carvalho irradiou até bem longe e D. Frei Manuel do Cenáculo Vilas Boas, Arcebispo de Évora, chamou-o para junto de si. Em breve, o intelectual viseense era por lá tido como “um dos mais doutos e esclarecidos espíritos”.
Devido às Invasões Francesas, abandona Nunes de Carvalho a cidade de Évora, não sem antes ajudar o seu protector Frei Manuel do Cenáculo. Ambos aí regressam mais tarde, resolvendo o conhecido Arcebispo recompensar os serviços e o talento do nosso conterrâneo com a oferta da maior parte da sua biblioteca.
Em 1813, é professor do Colégio das Artes de Coimbra; formado em Cânones e Leis, toma o grau de doutor, em 1822, passando, nesse mesmo ano, a professor efectivo da Universidade de Coimbra; por razões políticas, é obrigado a deixar a cidade do Mondego, em 1828, tendo sido perseguido pelos miguelistas a ponto de emigrar para França e Inglaterra. Investigador ilustre e cuidadoso filólogo, vem a encontrar no Museu Britânico de Londres o então inédito “Roteiro de D. João de Castro”, que copiará com o “Itinerarium Maris Rubri” do mesmo Vice-Rei da Índia. O primeiro título será publicado em Paris, em 1833, e o breve mas seguro aparato crítico será louvado por Inocêncio Francisco da Silva. Aliás, o prefácio da obra informa que Nunes de Carvalho escreveu uma inédita “A Vida de D. João de Castro”.
Ainda em França, veio a ser professor de Literatura da filha de D. Pedro IV, futura D. Maria II. Informado bibliógrafo, citado mesmo por Larousse e Ferdinand Denis, Nunes de Carvalho regressa à Pátria (1834) e ao exercício docente, em que permaneceu até à jubilação em 1861, sendo investido, em 1836, como Bibliotecário-Mor da Casa e Real, Guarda-Mor do Real Arquivo da Torre do Tombo, Oficial-Mor da Casa Real e Presidente da Comissão de Depósito das Livrarias dos Conventos, com a função de coligir no Convento de S. Francisco de Lisboa os livros e códices de instituições religiosas da capital, da Estremadura e do Alentejo. Homem de cultura, fez conduzir para a Academia das Belas Artes de Lisboa mais de 400 quadros.
António Nunes de Carvalho vem a falecer em Coimbra, no dia 5 de Julho de 1867, cidade em que, afinal, viria a ser sepultado.
A valiosa biblioteca que congregou durante uma vida longa e multifacetada deixou-a Nunes de Carvalho à cidade de Viseu, a fim de ser criada uma biblioteca pública . E assim a nossa Câmara de então veio a receber cerca de 10000 volumes, folhetos e obras incompletas. Entre eles, estava a “Uirtuosa Benffeyturia” do infante D. Pedro, que o erudito Dr. Amadeu da Silva resgatou, em inícios da década de vinte do século passado, da impensável função de calçar uma estante da Biblioteca Municipal. Avultam ainda importantes incunábulos do século XV e outras magníficas espécies e obras únicas.
Retratado a óleo por António José Pereira (1862) e nome de rua desde 20 de Outubro de 1910, Viseu clama, pelo menos desde 1946, por muito mais. Uma lápide na sua velha casa não seria pedir muito. Quanto a dar o nome à Biblioteca Municipal ( e o que está feito, está feito), havia sempre o inultrapassável defeito de ter nascido em Viseu. E de ter sido “pedra fundadora”.
Poucos puderam dar tanto. Assim o diz a grandiosidade da sua dádiva. Ouvem-se ainda os ecos. E as vozes de 1946, 1970, 1981, 2002 e 2003. De Viseu, em volta da coluna de Agrigento. Sempre.

3 comentários:

Anónimo disse...

Grande nome a quem os livros tanto devem. Abraço!

isabel mendes ferreira disse...

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abraço.

Anónimo disse...

Grande descoberta e tamanho desconhecimento! Obrigada e boa-tarde!