2006-05-31

o cânone literário e Aquilino Ribeiro


Um dia, um escritor, ainda dito A. Bias Agro, lança ao papel as primeiras palavras e fala de uma casita. Ninguém podia adivinhar quem entrava na literatura portuguesa.
Um escritor pode nascer no dia 13 de Setembro de 1885 e não saber ainda que o destino o virá a tornar em figura importante. Pode mesmo começar a escrever na década de 10 ou de 20 e para sempre ficar esquecido, injustamente à margem, como aconteceu, por exemplo, com António de Sèves, esse escritor que anunciou algum do melhor Aquilino, sem que para si sobrasse uma mera nota de rodapé ou uma menção honrosa em final de capítulo.
No espaço consagrativo nem sempre cabem nomes principais de uma época, nem tão pouco encontram guarida muitos dos nomeados por figuras maiores. Os fautores do gosto, críticos-criadores ou criadores-críticos já entronizados e canonizados, estabelecem as magníficas qualidades de um sem-número de autores, que logo abraçam o silêncio e a simpatia das margens. No interim, alarga-se o espaço do provisório e o dito canónico é palavra ao vento pronunciada por um nome central que não domina a estranha forja das boas nomeações e das fundantes diferenças. Nesta massa confusa, compósita de intersecções, vaidades e suspeições, viaja o vício da perpetuação e da indústria conserveira. O perigo da literatura ilustrativa e patrimonial é evidente: permite o contacto com o esperado, o que, de facto, é um angustiante passo, que é ainda sinal de que o vezo conservadorista em literatura pode ser improdutivo e estéril. Contra o dito, ajuda à ginástica do intelecto a aposição aquiliniana, também certeira, que respigo em Abóboras no Telhado e que conduz também à perplexidade que atrás plasmei. Cito:

“Em literatura não há tropos nem pamplinas que valham. Quando se diz dum escritor: cristalizou, embora o fenómeno de cristalização seja privativo dos corpos nobres e revele uma forma superior física, significa: não o leiam que é sempre o mesmo. Ser sempre o mesmo neste mundo volúvel, versátil, esfomeado de novidades, é ocupar um grau de beleza moral que honra a espécie. Em arte, é um jubileu. Mas para o público proteico, é a sonolência.”

E emendo o dito. Porque, de facto,e entendendo com José Saramago e Alberto Correia que o mundo aquiliniano é arqueologia, entendo de imediato que o grau de beleza moral que dessa arqueologia se levanta é moderno e urgente. A cisão com o modo “caseirinho” e suspenso desse jeito único de procrastinar um “mundo já outro“ é ainda uma forma única de cristalizar a substância do momento. Como o diz, aliás, o consistente aquilianista Alberto Correia na última Beira Alta, cavando o abismo, para melhor evidenciar a nobreza do que não mais existe. Como estar-se, pois, fora da literatura?
Miguel de Sá e Melo, em 1936, dizia que o mais importante escritor português era José Régio. Cerca de duas décadas antes, por 1913, Carlos Malheiro Dias dizia Aquilino o príncipe das letras portuguesas. Dois anos depois, em 1915, no Inquérito Literário de Boavida Portugal, realizado em 1912, todos desconhecem o ainda nascente Aquilino: esquecem-no Júlio de Matos, Lopes Mendonça, Teixeira de Pascoais, Augusto de Castro, Gomes Leal, João Grave, Gonçalves Viana, Adolfo Coelho, Veiga Simões, Júlio Brandão, Visconde de Vila Moura e tantos outros, não entrevendo nas colaborações periódicas o gérmen de um escritor de eleição. Em 1934, em entrevista concedida ao “Suplemento Literário” do Diário de Lisboa, Aquilino Ribeiro, antes de expender importantes actos judicativos sobre os processos de canonização literária, é apresentado como “um dos grandes e raros casos da literatura portuguesa”. Em simultâneo, ontem como hoje, as palavras aquilinianas trazem uma visão ácida e desconfiada sobre a “shared culture”:

“Á tona desta sociedade, cada vez mais mecânica e febril, manter-se-á como peixe em água o escritor oficial. Este que é um baluarte da boa ética, fiche em matéria da pátria, de religião, de política, que decanta as virtudes ambientes do burguês, do banqueiro, do comerciante, que detesta Caliban; apenas porque veste de Cândido, este resiste à avalanche. Constituir-se-á uma geração de novos Tolentinos, à mesa posta do poder. Os salões, as academias, os cenáculos distribuir-lhes-ão as migalhas do açafate como alpista aos canários. E salvar-se-á desta forma a honra literária do século.”

Também de alpista se alimenta o fóssil. O texto de Aquilino é admonitório dos perigos da estabilidade podre e de todas as relações de dependência ou de marginalização. Fender o centro e repartir para dar de novo é um imperativo saudável e estimulante. Em 1934, Aquilino convoca para a “mesa do poder” os nomes de Rocha Martins, Augusto de Castro, Gaspar Simões, Tomás Ribeiro Colaço, Ferreira de Castro e António Sérgio. Nem paz, nem harmonia na literatura, pois.
Contemplável no silêncio dos eleitos, haverá sempre um lugar à sirga para Mestre Aquilino no curso de Minerva. E os outros, que lugar para as suas vozes também definitivas? Respondam, pois, os melhores leitores.


2006-05-30

O lume e o chão (romance a duas mãos)

Capítulo III

Martim de Gouveia e Sousa

Persiste a memória coalhado no íntimo. Da fusão, pouco pensar, menos dizer. E, no entanto, reconstruo na ogiva do entendimento duas ou três razões, que escondo debaixo do tapete dos dias e das horas. Nem mulher alguma o sabe ou pode saber.
Um silvo acorda-me e traz-me à cidade, irreconhecível, mudada. Lembro agora que fui chocando impenitentemente com os passageiros que bailavam no meu sonho. Em frente, passado o grande átrio da estação, uma praça sorri tristemente ao néon que abraça a noite. Cansado da leitura e da vertigem memorial, súbita alegria vem ao corpo: sem bagagem, só este cárcere transporto, fascínio de carne, ossatura e vísceras.
A noite caiu em Viseu não há muito. É Outono e as folhas douradas, quentes, entram-me nas veias, na melancolia doce da pele. Tenho sede, agora que percorri o caminho árduo do entendimento, sabendo porque vim. Uma voz chama. Resisto ao apelo e não à sede. Em frente do passeio que sigo, a porta de um bar traz-me a dessedentação em caneca de cerveja. Entro no “Lampião”, quase devagar, e peço o ouro da seara, líquido que encosto ao sangue, enquanto devoro o prego duplo excepcional. Em volta, pouca gente ainda, pouca gente assim só.
Pacificado, tal o poder do estômago, percorro agora, desde o fundo, a avenida António José de Almeida, recortando as sombras que entrechocam com a iluminação das montras e dos escassos reclames. Uma aragem fria percorre-me o corpo, anunciando-se na pele. Percorro velhos caminhos gastos e escurecidos, lembrando ainda a voragem da consciência que há pouco me assolara e me trouxera alguns dos encontros e desencontros de uma vida por encher. À direita, o espelho poliédrico do grande prédio dos serviços médico-sociais afunda a cidade no comodismo rasteiro da contenção, desvirtuando o carácter horizontal da velha urbe.
Subo já em direcção ao Rossio. O edifício solenemente recortado do Conselheiro Afonso de Melo emoldura o postal citadino em que se divisa, só parcelarmente, a secular edificação camarária. Avanço, reconhecendo o trilho. Entretanto, o frio e a aragem sopram contra as folhas das árvores. A ágora estende-se agora sob o meu olhar, recoberta pelo calor das velhas tileiras, pontualmente odoríferas. Estou no coração da cidade, percorrida que foi a grande vascular que leva ao mundo. O comboio é a porta para a descoberta e para o sonho. Como o diz, por exemplo, Alberto de Oliveira, em poema que recordo:

No trem de ferro, vimo-nos um dia
E amar-nos foi obra de um momento,
Tudo rápido, como a ventania,
Como a locomotiva ou o pensamento.
- Amo-te!
- Adoro-te!
A estação primeira
Surge. Saltámos nela ao som de um berro.
Nosso amor, numa nuvem de poeira
Tinha passado como o trem de ferro…

Um polícia rola pastosamente o seu zelo e cose-se com o Banco de Portugal, escondendo-se do rigor da noite que agora claramente cai. Estaco perto da passadeira e contemplo o matizado das vidraças do “Clube” e a coloração oblíqua da rua Formosa. Nada muito mudou. Talvez não lembrasse já que o centro da cidade, em noites rigorosas, tem sempre um aspecto desolado e triste. Nem um livro para amenizar o tempo que o sono há-de encobrir. Um reclame da moda esbarra comigo, saído da montra de uma farmácia, e oferece a beleza num corpo demasiado evidente e devorante. Avanço de novo, ainda enviesado no olhar, preso à imagem ostensiva. “Emagreça em dias o que ganhou em anos. A diferença está na pele.” Fujo das palavras, ainda preso ao fragmento erótico. Na curva, na escadaria da praça, as luzes incidentes da livraria (da praça dita) destacam um título de Fernando Ribeiro, “Como escavar um abismo”, há pouco saído em 1ª edição. É este o ano, é da montra o poema que leio do livro aberto para a noite em mim:

No fim doce da noite,
No limite familiar da
Próxima dor
Seremos doutorados
Horroris causa:
Pelo fogo – no caos,
Pela chuva – na mentira.


Os nossos curriculuns mortis
Serão enviados
Em envelopes amaldiçoados.


Em todas as casas seremos
Sementes e armadilhas de cristal,
Entretendo famílias inteiras
Em refeições de carne vermelha
E provas de vinhos malditos,
Com fome e sede
Do Mal.


A livraria fechada e o desejo plantado na montra. Amanhã vou comprar o livro. Mãos vazias de novo, pletórico o peito de ideias, chamas e gumes. Vou para o hotel aqui a dois passos, rápido agora colado à sombra. Vejo o muro, entro e inscrevo os dados no balcão de entrada. O quarto é o 112, não, não tenho bagagem, só corpo e alma queimada. Deito-me, levanto-me, banho-me, deito-me, quase adormeço à meia-noite. Sem sono, quase acordo. Viro-me, durmo então. Como um golpe de faca afiada, o estridor do telefone irrompe. Uma estranha vibração percorre-me. A penumbra desce da lua.

imagens vinárias seiscentistas na "Prosódia" do Padre Bento Pereira


1. O Padre Bento Pereira nasceu em Borba, no ano de 1605, vindo a falecer em Évora a 4 de Fevereiro, “no estado de imbecilidade”, como o afirma Inocêncio Francisco da Silva. Filho de Francisco Pereira e de Catarina Rodrigues, alistou-se em Lisboa na Companhia de Jesus, a 27 de Junho de 1620.
Jesuíta, Doutor em Teologia, Qualificador de livros em Roma e Reitor do colégio dos Irlandeses em Lisboa, Bento Pereira é ainda conhecido por ter publicado em 1634 uma obra intitulada Prosodia in vocabularium trilingue Latinum, Lusitanum & Castellanum digesta (Évora, Emmanuele Carvalho), que obteve assinalável êxito, como o comprovam as várias edições que vieram a lume, gradualmente ampliadas e alteradas. Para além desta, conhecem-se as de 1643, 1656, 1661, 1669, 1674, 1683, 1697, 1711, 1723, 1732, 1741 e 1750.
Mas não se ficou por aqui o labor do filólogo jesuíta. Antes ainda de ter saído a mencionada e cultivada obra, já Bento Pereira publicara o Vocabularium bilingue Latinum et lusitanu (1632), logo se seguindo Pallas togata, et armata documentis politicis in problemata humaniora digestis (1636), Thesouro da lingoa portuguesa (1647), Florilegio dos modos de fallar, e adagios da lingua portugueza (1655), Academia seu respublica litteraria utiliter et nobiliter fundata, legibus ac moribus instituta, privilegijs munitá, ludis ac certaminibus litterarijs exercita (1662), Promptuarium juridicum: quod scilice in promptu exhibebit rité ac diligenter quaerentibus omnes resolutiones circa universum jus Pontifici~u, Imperíale, ac Regium Promptuarium juridicum: quod scilicet in promptu exhibebit rité ac diligenter quærentibus omnes resolutiones circa universum jus Pontifici~u, Imperíale, ac Regium (1664) e a Ars grammaticae pro lingua lusitana addiscenda latino idiomate proponitur (1672). Deixou ainda um conjunto de obras manuscritas prontas para impressão.

2- A Prosodia in Vocabularium Bilingue, Latinum, et Lusitanum, Digesta, in qua dictionum significatio, et syllabarum quantitas expenditur do Padre Bento Pereira é, sem dúvida, uma fonte privilegiada para a delimitação do chamado “Tesouro da Língua Portuguesa”. De facto, o repositório lexical e idiomático nele plasmado, com dilatado espaço de leitura (e relembro que houve, no nosso país, edições entre 1634 e 1750), foi um lugar amplamente frequentado e repercutido por privilegiados falantes, que terão, também por essa via, modelizado o discurso colectivo. A obra em apreço, original e lexicalmente rica, mostra a amplíssima “enciclopédia de referência”, que abrange um vasto universo do saber possível de então. Acresce ainda, com acuidade indiscutível, que a obra revela sempre um escritor dotado de elevada competência linguística e metalinguística, bem como de uma consistente competência cultural, apoiada sempre por específica e copiosa bibliografia indicada no início da obra. Avulta também que os exemplares observados, de edições diversas, reflectem traços de manuseio, alguns mesmo com anotações de diferentes épocas – eis, pois, outro claro sinal da influência da Prosódia na modelização do discurso colectivo.
Dito isto, direi que a obra que trabalho é um texto sem possibilidade de negação e verdadeiramente positivo, sendo:
a) um indenegável “teatro da erudição”;
b) um privilegiado objecto cultural conformador da língua portuguesa;
c) um relevante espaço de fixação de uma sociedade dramática e gesticulante, de acordo com o diagnóstico de Maravall ao tempo barroco;
d) um exemplificativo caso de como a pragmática do tempo agia sobre o escritor e promovia o fim pedagógico da acção cultural;
e) um caso ecdótico complexo, não tanto pela ilegibilidade textual , mas mais pelos problemas de colação que um texto em fólio deste tamanho sempre comporta, tanto mais que as edições e alterações são inúmeras.
Em suma, como o diria um Klaas Huizing, influenciado por Derrida, a “ciência só ganhou em continuidade e constância com o apogeu da arte da leitura correcta, isto é, da filologia.”
Friso: a Prosódia do Padre Bento Pereira é uma obra frequentada e repercutida por falantes privilegiados, cuja riqueza lexical deriva também da enciclopédia de saber que comporta, não espantando por isso a sua ampla difusão e as edições frequentes durante um século. Lida e vivenciada por um vasto público, a Prosódia é ainda o espelho da mentalidade seiscentista e das suas particularidades inibidoras e arrebatadoras. Não pode deixar de ser também o mais precioso legado de um filólogo laborioso que colheu o aplauso do seu tempo e do porvir. Dos depoimentos a seu respeito, realço aquele do Padre Francisco de Fonseca que o diz “homem de costumes inculpáveis”…
Por dentro, é bom que em breve comece a falar o miolo do texto, que permite a intuição de imagens vínicas com alguns séculos. Até lá, concluo dizendo:
“A filologia é essa venerável arte que em primeiro lugar reclama do seu adorador que a acompanhe, que dê tempo ao tempo, que esteja tranquilo, que seja vagaroso – como uma ourivesaria da palavra, de onde tem de sair o trabalho mais puro e cuidadoso, mas de onde não sai nada que não seja feito devagar. Ela própria não o acaba nunca; ensina a ler: ou seja, devagar, profundamente, cuidadosamente, com outros pensamentos, portas que se deixam abertas, dedos suaves e olhos amorosos. Filólogo é aquele que ensina a ler devagar.”

3. A edição da Prosódia de que me vou servir para captar as imagens vinárias do Seiscentismo português e da cultura universal é a última, a de 1750. As razões desta opção prendem-se com a integração de materiais que sempre foi sendo feita ao longo das diferentes vindas a lume, fácil sendo pressupor que a derradeira edição conhecida contenha maior número de elementos.
Assim, e dentro do Vocabularium Bilingue, Latinum, et Lusitanum, destaco as seguintes entradas:
Thyas, dis, f. g. A Sacerdotiza de Baccho, sacrificado.
Thyasotae, arum, m. g. pl. Os Sacerdotes que sacrificavão a Baccho.
Thyasti, orum, m. g. pl. Os dançadores nas festas de Baccho.
Thyasus, i, m. g. A dança, ou coro de virgens em hora de Baccho.

Uva, ae, f. g. A uva, fructo de vide.
Uva taminia. Uva, ou baga da norza negra.
Uva ollaris. Uvas de pendura, q~ guardavão metidas em panellas de barro.
Uvula, ae, f. g. dim. Uvasinha, pequena uva.
Uveus, a, um. Cousa de uvas, ou semelhante a uvas.
Uvifer, a, um. Cousa que traz & dá uvas, fertil de uvas.

Vindemia, ae, f. g. A vindima, a colheita das uvas; item as uvas.
Vindemiola, ae, f. g. dim. Vindimasinha, pequena vindima, &c.
Vindemialis, & le. Cousa das vindimas, &c.
Vindemio, as, avi, atum. Vindimar, colher, recolher as uvas.
Vindemiator, is, m. g. O vindimador.
Vindemiatorius, a, um. Cousa de vindima, pertencente à vindima.
Vindemitor, is, m. g. O vindimador

Vinea, ae, f. g. A vinha, o vinhago, trato da vinha.
Vinealis, & le. Cousa de vinhas, ou boa para vinhas.
Vinearius, a, um. Cousa de vinhas, ou pertencente a vinhas.
Vineaticus, a, um. Cousa de vinhas.
Vinetum, i, n. g. O vinhago, lugar, & campo de vinhas, as vinhas.
Vingidemia, ae, f. g. A vindima.
Vinitor, is, m. g. O vinheiro, cultivador de vinhas, vindimador, &c.
Vinitorius, a, u. Cousa de vinheiro.

Vinum, i, n. g. O vinho.
Villum, i, n. g. Vinhote, vinho fraco.
Vinacea, orum, n. g. pl. O bagulho da uva; item o bagaço da uva.
Vinaceae, arum, f. g. pl. Os bagulhos, ou bagaço da uva.
Vinaceus, a, um. Cousa de uva, bagulho, ou bagaço.
Vinalia, u, n. g. pl. Festas do vinho a Baccho, ou a Jupiter aos vinte, & tres de Abril, outras aos vinte de Julho.
Vinarius, ij, n. g. O vinhateiro, que vende vinho, item o bebado.
Vinarius, a, um. Cousa de vinho, pertencente a vinho.
Vinarium, ij, n. g. A taverna, ou taberna, casa, em que se vende vinho, copo, ou vaso de vinho.
Vinaticus. Cousa de vinho.
Vinibua, ae, f. g. A bebedora de vinho, a bebada.
Vinifer, a, um. Cousa que traz, leva, ou dá vinho.
Viniferum, i, n. g. O fresco, pichel, borracha, ou vaso de vinho.
Viniperda, ae, m. g. O bebedor, ou entornador do vinho.
Viniphorus, i, m. g. Vaso ou pessoa, que leva vinho.
Vinipotor, is. m. g. O bebedor de vinho, ou o bêbado.
Vinipotus, a, um. Cousa bebada, ou bebedora de vinho.
Vinolentus, a, um. Pessoa bebada, bebedora, ou toldada de vinho.
Vinolentia, ae, f. g. A bebedice, toldaçaõ com vinho.
Vinologia, ae, f. g. Tratado, ou discurso sobre o vinho.
Vinosus, a, um. Pessoa Bebada, farta de vinho, ou muito amiga de vinho; item cousa semelhante, ou que sabe a vinho.
Vinositas, tis, f. g. Inclinaçaõ, appetite demasiado a vinho, à bebedice; item semelhança, ou sabor de vinho.
Vingum, i, n. g. Vinho.
Vitis, is, f. g. A vide, a videira, a parreira.
Vitis alba. Norza branca. Vitis nigra. Norza negra.
Vitis sylvestris. Vide brava, herva semelhante nas folhas à herva moura.
Vitis arbustiva, seu maritata. Videira junta, & subida sobre arvore.
Viticula, ae, f. g. dim. A vide pequena, videirasinha, &c. Itê o elo da vide, ou de outra planta, ou herva, com que se pega, & ata, ao que alcança.
Vitesco, is. Fazer-se vide, crescer a vide.
Viteus, a, um. Cousa de vide, pertencente a vides, &c. (ou de vinho.)
Vitiarium, ij, n. g. Viveiro de Bacelo, Bacelo para plãtar.
Viticionia, ae, f. g. Parreira castiça.
Viticula, ae, m. g. O cultivador da vinha.
Viticultor, is, m. g. O cultivador da vinha.
Viticulu, i, n. g. O Bacelo, ou garfo da vide.
Vitifer, a, um. Cousa, que traz, tem, ou produz vides, vinhas, &c.
Vitiginens, a, um. Cousa de vide, ou que nasce de vide, &c.
Vitigineus latex. O vinho, &c.
Vitisator, is, m. g. O plantador, & cultivador de vinhas.
Vitisco, is. Fazer-se vide, crescer a vide.

Ultrapassadas as 1064 páginas do Vocabularium Bilingue, continua-se a Prosódia com o Thesouro da Língua Portugueza, aí vertendo o Padre Bento Pereira o conjunto de palavras de maior uso epocal. Relativamente aos vocábulos aí plasmados, destaco, para o nosso fim, os contidos na linguagem subsequente:
Agoado vinho. Vinum aquâ dilutum, vel commistum.
Bacelo. Novelletum.
Bacelo de vides machas. Masculetus, i.
Baceleiro. Novelleti custos.
Cepa. Mater vitis.
Cepa com vides. Vitis brachiata.
Cerca de vinha. Antes, ium.
Frasco de esfriar vinho. Apyrotum, i.
Frasco de vinho. Oenosorium, ii. Lagena, ae.
Lagar de vinho. Lacus, i. Torcular, aris.
Mosto. Mustum, i. Protropum, i.
Muscateis uvas. Uvae apianae.
Pinga. Stilla, ae. Gutta, ae.
Pinguinha. Guttula, ae.
Poda. Putatio, onis.
Podada cousa. Putatus, a, um.
Podadeira fouce. Falx putatoria.
Podador. Putator, oris.
Podadura. Putatio, onis.
Podaõ. Falx putatoria.
Podar. Puto, as.
Podar de polegar. Vitem ad pollicem tondere.
Redrar vinhas. Repastino, as.
Tasquinha. Asserculus, i.
Tasquinhar. Asserculo linum quatere.
Taverna. Caupona, ae. Taberna, ae. Ganea, ae.
Taverneira. Caupona, ae.
Taverneiro. Caupo, onis. Tabernarius, ii.
Taverninha. Cauponula, ae.
Vez de vinho. Vini sorbitio, vel haustus.
Vide, ou videira. Vitis, is.
Vide pequena. Viticula, ae.
Vide deitada de cabeça. Candosoccus, i.
Vide de enforcado. Vitis arbustiva.
Vide de mergulhão. Propago, inis. Tradux, ucis.
Vidonho. Genus, seu progenies vitis.
Vindima. Vindemia, ae.
Vindimador. Vindemiator, oris.
Vindimadura. Vindemia, ae.
Vindimar. Vindemio, as.
Vinhaça. Vappa, ae.
Vinha. Vinea, ae.
Vinhago, ou vinhadego. Viniarium, ii.
Vinhateiro. Vinarius, ii.
Vinhataria. Vinetum, i.
Vinheiro. Vinitor, oris.
Vinhete. Vinum, i.
Vinho. Vinum, i. Bacchus, i.
Vinho puro. Merum, i.
Vinho branco. Vinum album.
Vinho trasfegado. Vinum diffusum.
Vinho de pez. Vinum picatum.
Vinho de cheiro. Vinum odorum.
Vinho fino. Vinum pramnium. Falernum.
Vinho tinto. Vinum rubeum.
Vinho palhete. Vinum heluum, vel signium.
Vinho de pouca dura. Vinum fugies.
Vinho botado. Vappa, ae.
Vinho de repiso. Vinum tortivum.
Vinho donzel. Vinum lene.
Vinho de toneis. Vinum doliare.
Vinho aguado. Vinul delutum.
Vinho forte. Vinum acre.
Vinho de fóra. Vinum externum.
Vinho da terra. Vinum vernaculum.
Vinho aziumado. Vinum acrebum.
Vinho verde. Vinum austerum.
Vinho limpo. Vinum defaecatum.
Vinho velho. Vinum annosum.
Vinho novo. Vinum novum.
Vinho de quatro annos. Vinum quadrimum.
Vinho de tres annos. Vinum trimum.
Vinho de dous annos. Vinum binum.
Vinho deste anno. Vinum hornum.
Uva. Uva, ae.
Uva espim, ou espinha. Uva crispa.
Uva passada. Uva passa.
Uva azeda. Uva acerba.
Uva temporãa. Uva praecox.
Uva serodia. Uva serotina.
Uvas de pendura. Uvae pensiles.
Uvas rosas. Uva hervolae, seu herveolae.
Uvas de boa casta. Uvae generosae.
Uvas bravas. Uvae taminiae, sylvestres.
Uvas pintas. Uvae variantes.
Uvas de urso pilritos. Ribes, is.
Uveiras. Vites arbustivae.

Segue-se, na ordem, a Primeira Parte das frases portuguezas, a que correspondem as mais puras, & elegantes Latinas: como tiradas de Marco Tullio, & outros Authores de primeira classe, ocupando as páginas compreendidas entre a 1229 e a 1296. Cito, de seguida, passos exemplares:

Beber muito vinho. Vino se obruere, immergere, ingurgitare.
Plantar vinhas, pôr bacelo. Vineam constituere, conferere. Vites ponere.
Cavar a vinha. Vineam pastinare. Scrobes facere.
Tornar a cavar a vinha. Vineam repastinare.
Podar a vinha. Sarmenta abscindere. Sarmentis vineam expurgare. Luxuriantes vites falce putatoria coercere.
Escavar a vinha. Vites ablaqueare.
Deitar cepas de cabeça. Vineam propagare.
Empar a vinha. Vineam pedare, impedare. Vites palis fulcire.
Aguar o vinho. Vinum infulâ aquâ diluere, domare, mitigare, jugulare. Vinum lymphare.
Arrobar o vinho. Vinum defruto dulcorare, sapam temperare.
O vinho demasiado embota o engenho. Vinum immod cum mentis in aciem hebetat, ingenii acumen obtundit.

Entre a página 1296 e a 1324, situa-se a Segunta Parte dos Principaes Adagios Portuguezes, com seu latim proverbial correspondente, que contém também algumas tiradas que permitem intuir um modo societal:
Bebe como funil. Dolium inexplebile.
Bebe como hum forneiro. Nec elephantus ebiberet.
Imagens vinárias na Prosódia do Padre Bento Pereira (1605-1681)
Bebello, ou vertello. Hic vobis vincendum, aut moriendum.
Depois de beber, cada hum dâ seu parecer. Bona est ossa post panem.
Depois da vindima cavanejos. Post vulnera clypeus. Item Hedera post Anthiteria.
Naõ se arrancando a sylveira, padece a videira. Rubo neglecto, vitis impetitur.
O bom vinho a venda traz consigo. Ou o bom vinho não ha mister ramo. Vino vendibili suspensa hedera nihil opus. Laudato vino non opus est hedera.
O medo guarda a vinha, e não o vinheiro. Timor optimus custos.
Por carne, vinho, e paõ deixo, quantos manjares saõ. Panis, vina, caro mihi sint, & caetera linquam.
Porcos com frio, homens com vinho fazem graõ ruido. Vina viros agitant, strepitantes frigora porcos.
Quem com o demo cava a vinha, cõ o demo a vindima. Daemonium vendit, qui daemonium prius emit.
São Miguel das uvas, tarde vens, e pouco duras. Pascha Diu optatum transigit una dies.
Se não bebo na taverna, folgo-me nella. Leontini semper circa pocula.
Sobre peras vinho bebas. Post pyra posce merum, vel mortis ad ostia clarum.
Vinho velho, amigo velho, ouro velho. Annosum vinum, socius vetus, & vetus aurum. Haec sunt in cunctis trina probata locis.

Já na Tertia Pars Selectissimarum Descriptionum, quas idem auctor vel olim à se compositas, vel à probatissimis Scriptoribus emendicatas alphabetico ordine digessit, entre as páginas 1325 e a final, citam-se trechos descritivos, provenientes de autores clássicos, partindo das palavras latinas Ebrietas e Ebrius.
Cumprida está a perquirição pela Prosódia do Padre Bento Pereira. Não tendo esgotado as possibilidades mostrativas do labor do clérigo jesuíta, penso, no entanto, que os exemplos apresentados são suficiente imagem das temáticas vinárias do passado e, pensando bem, do presente.

CONCLUSÃO

A Prosódia do Padre Bento Pereira é uma obra que reúne muito do saber possível na sua época. Percutida por falantes privilegiados, espelha ainda os modismos sociais e os ritos ligados às actividades do mundo do trabalho. E, assim, não espanta que do monumento lexical que é a obra em apreço seja possível intuir imagens vinárias que se levantam das palavras e expressões portuguesas e latinas.
Em simultâneo, permitem as amostras lexicográficas o estabelecimento de um objecto pedagógico-didáctico que serve a inúmeras práticas gramaticais. Lembro, entre inúmeras hipóteses, os trabalhos de enriquecimento lexical, a formação de palavras, os actos ilocutórios, os campos lexicais, os sinónimos, os hipónimos e os hiperónimos, que serão conteúdo escolar entre o 10º e o 12º ano.
Um grande e jovem poeta contemporâneo de nome Manuel de Freitas não resiste muitas vezes a levar para dentro da poesia o elemento vínico. Em “Lagar”, ouve-se mesmo:

As mães, e até as que não eram mães,
achavam salutar que mergulhases no mosto,
na promessa apenas desse vinho tinto…


Assim também em Bento Pereira, como vimos.


BIBLIOGRAFIA ACTIVA DE PEREIRA, Bento, S.J. 1606-1681.

Vocabularium bilingue latinum et lusitanum, Ebora, Tip. da Academia, 1732.
Prosodia in vocabularium trilingue, Latinum, Lusitanicum, & Hispanicum digesta... / Authore Benedicto Pereyra..., Fecit sumptus Dominicus Pereyra da Sylva... . - Eboræ : apud Emmanuelem Carvalho, 1634. Ulyssipone, apud Paulum Craesbeeck, 1643, 1656. Ulyssipone, apud Antonium Craesbeeck de Mello. Prosodia in vocabularium trilingue Latinum, Lusitanicum, et Castellanicum digesta... / Authore Doctore P. Benedicto Pereyra.... Prodit opus in hac quinta editione locupletatum per eundem authorem... . - Ulyssipone : ex proelo, & sumptibus Antonij Craesbeeck á Mello, 1661, 1669 e 1674. Prosodia in vocabularium trilingue Latinum, Lusitanicum, et Castellanicum digesta... / Authore Doctore P. Benedicto Pereyra.... Prodit opus in hac sexta editione locupletatum per eundem authorem... - Ulyssipone : ex poelo [sic], & sumptibus Antonij Craesbeeck â Mello, 1683. Prosodia in vocabularium bilingue, Latinum, et Lusitanum digesta... / Auctore Doctore P. Benedicto Pereyra.... Septima editio auctior, et locupletior ab Academia Eborensi... . - Eboræ : ex Typographia Academiæ, 1697. Prosodia in vocabularium bilingue latinum, et lusitanum digesta. Octava editio . - Eborae : Typ. Academiae, 1711. Prosodia in vocabularium bilingue latinum, et lusitanum digesta. Nona editio . - Eborae : Typ. Academiae, 1723. Prosodia in vocabularium bilingue. latinum, et lusitanum digesta.... Octava editio . - Eborae : Typ. Academiae, 1732. Prosodia in vocabularium bilingue latinum, et lusitanum digesta. Nona editio . - Eborae : Typ. Academiae, 1741. Prosodia in vocabularium bilingue latinum, et lusitanum digesta. Decima editio . - Eborae : Typ. Academiae, 1750.
Pallas togata, et armata documentis politicis in problemata humaniora digestis, & in utroque pacis belliq; statu rempublicam formantibus, varia historicæ atq; poeticæ eruditionis supellectili ornatur: Opus humaniorum literarum professoribus, ipsisque etiam concionatoribus perquàm utile. / Authore Benedicto Pereyra... . - Eboræ : apud Emmanuelem Carvalho, 1636.
Thesouro da lingoa portuguesa, / composto pelo Padre D. Bento Pereyra... . - Em Lisboa : na officina de Paulo Craesbeeck, & à sua custa, 1647.
Florilegio dos modos de fallar, e adagios da lingua portugueza; dividido em duas partes: na primeira das quaes se põem pela ordem do alphabeto as phrases portuguezas; e na segunda se põem os principaes adágios portuguezes, com seu latim proverbial correspondente. Para se ajuntar á Prosódia e Thesouro Portuguez, como seu appendix ou complemento, Lisboa, por Paulo Craesbeeck, 1655.
Oraçaõ fúnebre que fez na língua Latina em a Universidade de Evora em as exequias do Serenissimo Príncipe D. Theodosio a 17 de Novembro de 1653, Lisboa, por Paulo Craesbeeck, 1655.
Academia seu respublica litteraria utiliter et nobiliter fundata, legibus ac moribus instituta, privilegijs munitá, ludis ac certaminibus litterarijs exercita, Rectoris, Cancellarij, Conservatoris, Officialium, Doctorum, Magistrorum, & Scholasticorum præsidio instructa, Collegijs, collegarum, & præbendator~u seu portionistarum apparatu amplificata suo litterario regimine novam, & amplam materiam suppeditat disputandis theologicè, ac juristicè moralibus quæstionibus, quæ decem libris continentur. / Authore D. Benedicto Pereyra... . - Ulyssippone : ex officina, & sumptibus Antonij Craesbeeck de Mello, 1662.
Promptuarium juridicum: quod scilicet in promptu exhibebit rité ac diligenter quærentibus omnes resolutiones circa universum jus Pontifici~u, Imperíale, ac Regium, secundúm quod in tribunalibus Lusitaniæ causæ decidi solent: Opus depromptum est præcipue ex authoribus Lusitanis... / Collegit P. D. Benedictus Pereyra... . - Ulysippone : ex typographiâ Dominici Carneiro, 1664. Eboræ : ex Typographia Academiæ, 1690.
Regras/ geraes,/ breves, e comprehensivas/ da melhor ortografia,/ com que se podem evitar erros no escrever/ da lingua latina, e portugueza./ Para se ajuntar à Prosodia/ ordenadas pelo author della, o/ P. D. Bento Pereira/ da Companhia de Jesus, Qualificador/ do Santo Officio./ Approvadas por varões peritissimos em huma, e/ outra lingua./ Dividem-se em trez partes./ A primeira he das regras commuas à lingua latina,/ e portugueza. A segunda he das tocantes só/ à latina. A terceira he das tocantes/ só à portugueza./ . - Em Lisboa : por Domingos Carneiro, 1666.
Elucidarium sacræ theologiæ moralis, et juris utriusque: exponens universum idioma, id est proprietatem sermonis theologici, canonici, & civilis... / Authore Patre Doctore Benedicto Pereyra... . - Ulysippone : ex typographiâ Dominici Carneyro, 1668.
Promptuarium theologicum morale, secundùm jus commune, & Lusitanum: Seu alio nomine explicatius, Summa ex universa theologia morali, continens quinquaginta Tractatus... / Authore Doctore Benedicto Pereira..., Pars prior constans ex viginti quinque Tractatibus [Pars posterior constans ex viginti quinque Tractatibus, qui additi Tractatibus prioris partis, complent numerum quinquagenum [sic]] . - Ulyssipone : typis, & sumptibus Joannis a Costa, 1671-1676.
Ars grammaticae pro lingua lusitana addiscenda latino idiomate proponitur... Ad finem ponitur ortographia,... / authore P. Doct. Benedicto Pereira . - Lugduni : sumptibus Laurentii Anisson, 1672.
Historia moralis de universo orbe [Manuscrito ]]: in qua referentur, seu potius vivis politioris litteraturae coloribus exprimuntur in novem tabellis, non solum nomina situs, climata, fertilitas, aut sterilitas regionum, sed etiam omnium pene gentium veteres, ac recentes mores, cum sacri, tum profani, cum bellici, tum politici / P. Doctor Benedictus Pereyra, Societatis Jesu Portugallensis Borbanus... . - , [16__] & outros manuscritos.

BIBLIOGRAFIA PASSIVA

Justino Mendes de Almeida, “Lexicógrafos portugueses da língua latina – 3. A Prosódia de Bento Pereira”, in Revista de Guimarães, vol. LXXVII, 1-2, Janeiro-Junho de 1967, pp. 5-12.
Diogo Barbosa Machado, Bibliotheca Lusitana, Tomo I, Coimbra, Atlântida Editora, 1965, pp. 508-510. Correcta reprodução da edição “princeps” de 1741, revista por M. Lopes de Almeida.
Inocêncio Francisco da Silva, Dicionário Bibliográfico Português, Tomo I, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987. Reprodução fac-similada da edição de 1858.
João Henriques Fidalgo Lopes da Silva, Dos principaes adagios portuguezes, com seu latim proverbial correspondente de Bento Pereira [ Texto policopiado ] : leitura crítica e edição / João Henriques Fidalgo Lopes da Silva, Aveiro, 1999. Dissertação de Mestrado em Estudos Portugueses, Universidade de Aveiro, 1999.
Telmo Verdelho, Historiografia linguística e reforma do ensino. A propósito de três centenários: Manuel Álvares, Bento Pereira e Marquês de Pombal, separata de Brigantia. Revista de Cultura, vol. II, 4, Outubro-Dezembro de 1982, pp. 1-39.
Telmo Verdelho, “Os dicionários bilingues até ao fim do século XVIII. Fonte privilegiada da lexicografia portuguesa”, in Colóquio de lexicologia e lexicografia /actas), 26 e 27 de Junho de 1990, Universidade Nova de Lisboa, s. d., pp. 248-256.


2006-05-28

regressado, porque o sbsr é um instinto: the beauty of horror dos moonspell

LUNAR STILL
The Principles firmly confused.
Shake them awake. The circles vicious.
All full of wishes.
The vapours which invite us in.
In hope we bring the final piece.
Afraid of what it means.
The icy patterns ascending dead.
As I decide to stay.
And cover with shadows my comeback way.
I look outside and it´s lunar still.
(Fernando Ribeiro, Moonspell )


2006-05-24

Verão de 1853: Alexandre Herculano em Viseu


Os poetas cruzam as cidades e libertam de si o azul candente da perfeição possível. Sobre o silêncio do tempo percute então uma íntima voz que é conhecimento e sopro lustral. Do lugar, de cada lugar levantam-se vultos intemporais e polidos, “pela chuva lavados”, como no poema de Villon.
Em época de jactância e de humores viscosos, são cristalinas as palavras dos escritores clássicos. Tal limpidez, fruto de uma perfeita sazonação estilística, colhemo- -la nós, muitas das vezes, em livros de viagens ou em diários. Lembro, “en passant” e em homenagem ao momento, o interessantíssimo relato de Hans Christian Andersen “Uma visita em Portugal em 1866” (agora reeditado); convoco, com particular detença, os “Apontamentos de viagem (1853-1854)” de Alexandre Herculano.
E mais se inscreve no nosso íntimo o carácter instrutivo desse textos “leves” e não destituídos de qualidades, quando, como acontece na obra alexandrina citada, os lugares citados não estão fora da circunscrição do espírito, nem tão pouco do sopro do lugar. O rasto textual dos apontamentos do escritor romântico obrigam o cultor da literatura a voltar à cidade outrora inscrita e rediviva pela dimensão da história.
O fascínio e os labirintos do texto tornado público ferem a ágora com os lugares luminosos que a arca da memória sempre conserva. Assim aquele Verão de 1853, no dia 2 de Agosto, em que Alexandre Herculano sobrepuja a cidade, instalando-se em casa de João (da Silva) Mendes, “sobrinho do barão de Foz Côa, um dos cavalheiros mais abastados da Beira e a mais nobre alma que eu conheço naquela província”, como o atesta o escritor em carta a António José de Ávila. Chegado a Viseu por volta das 10 horas da manhã, logo Herculano conclui da equipolência dos elegantes de província face aos elegantes da capital, sendo estes inferiores “nas formas que indicam a força sem danar à delicadeza.” A reflexão produzida, assente na análise dos que lhe estavam perto, na mesa, logo se continuou pelos meandros da política, falando-se, ontem como hoje, na corrupção e na desesperança. Cumprida a refeição e as obrigações costumeiras, Herculano e os amigos (para além do citado João Mendes, o irmão Francisco Mendes e Francisco de Barros Coelho de Campos) visitaram a Cava de Viriato, aludindo-lhe interrogativamente o escritor como “um acampamento romano como o de Condeixa Velha”, apresentando dela alguns outros traços descritivos.
No dia seguinte, 3 de Agosto, acompanhado pelo governador civil, Dr. Manuel de Melo e Castro de Abreu, e outras entidades viseenses, visitou Alexandre Herculano o Seminário e a Sé, deles louvando, respectivamente, a “escada singular” e a “bela abóbada ogival do século XV artesoada.” Mais comparou a mata do Fontelo à do Buçaco.
Nos dias seguintes, entre 4 e 11 de Agosto, trabalhou o historiador no Arquivo da Sé, trazendo à tona do mundo a lenda de Vasco Fernandes e novas notícias sobre a Cava (terá tido quatro entradas de cantaria; esteve fechada, com uma porta, no século XV; teve no interior a extinta capela de S. Jorge…).
Por 12 de Agosto, Herculano abandona a cidade e, com a manhã a romper perto de Cavernães, dirige-se já para o Mosteiro de Ferreira de Aves. A rescendência desta presença impoluta corre ainda em cada recanto da cidade. Da sua integridade falam, por exemplo, muitas das suas cartas. Uma delas classifica José de Oliveira Berardo como “quem deu a este país o seu Camões da pintura.”
Tal capacidade de dar o seu a seu dono é apanágio dos verdadeiros intelectuais e dos homens que verdadeiramente ensinam. Assim o diz o seu canto exilado no passo poético que cito: “Lá no meu Portugal, onde a frescura / Da ribeira perene, da floresta / Tem valor, porque o sol tem luz, tem vida!”. Vida que escorre dos cantos das cidades.


2006-05-23

a cidade & o texto

Os livros são caminhos inscritos contra a cidade. Não espanta, pois, que a gordura da pólis expluda no centro ígneo da usura: o poder invoca o fogo, porque não pode domar a “arca do espírito”, desarticulando o manto comunitário, como se, no sentido cervantino, as letras levassem os homens às chamas. É, no entanto, de ti, leitor com memória da biblioclastia da história, que nasce em cada dia de leitura, vida por sobre a morte de cada círculo hermenêutico por ti traçado, um livro sempre incombustível.
Inscrito e correctivo, o texto livresco manchado pela negrura da imprensa ilude a diferença epocal e abraça a rede aurática do saber, não obstante o avanço das tecnologias da informação que apertam contra a cidadela que sempre resiste. Resistirá sempre? O hipertexto à distância do dedo é suficientemente informe e gigantescamente disforme, plástico e refractário ao sentido, para que, mesmo que assinado, divirja da tonalidade anódina do anonimato. Incomensurável, vai ser sonegado pelas viroses e pelos fungos do esquecimento – em volta, agora vejo, aglomeram-se os ácaros para o manjar digital. Não temo, pois, que o “interland” da literatura, com inscrição remota e sempre moldável, feneça agrilhoada pelas estocadas do internauta.
A cidade abre-se à leitura, agora que a “máquina hermenêutica” carece de afinação e de um pouco mais se silêncio. Aliás, muita da crise propalada (índices de leitura, de alfabetização, de cultura…) tem origem nos demagogos que tomaram as universidades e as escolas, destruindo os textos primigénios em prol das leituras didácticas, das “fotocópias” fundamentais, da informação acessória, do discurso secundário… Abandonando os textos à escavação ocasional, fragmentária, transforma-se a literatura em burocracia, em vanidade, esgrimida sumptuosamente pelos guardiães da impostura que impõem Dan Brown e não conhecem Ramos Rosa. Eis o perigo da ilusão da literatura: deseja-se menos ao lado e muito mais ao centro.
Outras vezes, atira alguém com um rol de títulos que nunca leu. Sem lisura intelectual, a morte do livro vai saindo à rua. Quem lê, hoje, um livro completo? Quem vem matar o livro com a sua vaidade? Ao fim da escuta, as prensas não param quando o objecto celebrado é um livro de um nomoteta que existe para ser lido do princípio até ao fim.
Desprendidas as letras do objecto maior, ei-las no mundo e na cidade à espera de serem lidas. E assim lemos o mundo, com Deleuze, olhando a fragmentada cidade que arde. Esta é a nossa cidade. Com uma memória activa, ela reescreve-se, construindo-se em cada momento por mão irreconhecível, assim se condenando o cidadão a uma leitura “in fabula” (Fernando de la Flor).
A língua de pedra da cidade solta um queixume junto à pele. O texto do aglomerado, já ilegível, dói-se na superfície do granito que luta contra o ácido dos dias novos. Opaco e cinzento, temo, em cidade também dita “jardim”, que a pressa continue a debilitar as zonas verdadeiramente inscritas. A balbúrdia da pregnante intervenção, quase sempre obra sem ideia, convoca uma tensão insuperável: ou o antigo burgo era nuvem sem espessura ou o ritmo alucinante dos golpes cegos e desrespeitadores do cidadão é ferida incisa na memória que se destrói.
Pego na cidade desde o bolso e aproximo-me dos seus signos agudos. Rodeio-lhe a aspereza com o calor da inscrição. Leio o texto desalentado pela memória destruída. Não ler depressa, antes devagar. Assim, na algaravia do texto da nossa cidade. Fora dela, neste tempo de não-inscrição (José Gil), limpamos o corpo da aparência à sombra da textualidade. O texto já não habita a cidade.


2006-05-22

Régio e Judith Teixeira: um encontro & uma "brasa ardente"




00. Conduzindo às chamas, as letras dizem, no sentido de Deleuze, não haver lugar para o medo nem para a esperança. A confusão instaurada desde cedo na cidade dos homens, com os jogos mediáticos e a sede de centralidade, fazem dos objectos impressos rostos sem face que conjugam o esquecimento com a “desmemória”. Ilude-se o escriba contra o fascínio ainda aurático dos dizeres que já não dizem. O arco hermenêutico dos dias sobreviventes trazem só o sal da morte e o sussurro burocrático. Ao fim da escuta, muitos dos melhores actos poéticos são ágrafos e brancos, sem borrão de tinta escurecida. No entanto, encontros e desencontros existem que cortam a algaravia citadina e são matéria legível. Ao encontro, pois, do espaço cego e do negativo-produtivo da desintegração.

0. Judith Teixeira nasceu em 1880, Régio em 1901 (1). Este lapso temporal de duas décadas, no entanto, nada significa em termos de actividade literária, até porque essa aparente décalage, no que aos dois poetas respeita, se estreita um tanto, se pensarmos nas primícias literárias de ambos.

1. Em primeiro lugar, ocupemo-nos de Judith Teixeira. Não conhecendo quaisquer textos seus anteriores a 1918, não custa acreditar nas palavras judithianas que afirmam que desde muito nova ela se sentiu vocacionada para a escrita, tendo, na sua juventude, exercitado essa “urgência de dizer” em composições ainda incipientes. Sabe-se hoje que o seu primeiro (?) texto publicado aparece pelo Jornal da Tarde nesse ano de 1918, com o título “Almas simples (Fé)” (2), um texto praticamente desconhecido mas perfeito exemplar do neo-romantismo lusitanista. Segue-se-lhe, no mesmo periódico, já no ano seguinte, uma outra narrativa breve de título “Lali...”(3), texto sugestivo da predominân- cia decadentista judithiana. Mas não se fica por aí a esquecida e interessante poetisa, colaborando em 1922, com o sonetilho “Fim”, no segundo número da revista Con-temporânea, publicação que se dizia “para novos”, a ela voltando nesse mesmo ano e em 1926, para já não falar do gorado último número em que a poetisa colaboraria com o soneto “Vaticínio” (4). Lembro, de passagem, que esta revista assinalava o fim do dito Primeiro Modernismo, não obstante as diferenças face a “Orpheu” que um Pessoa de imediato tipificou na consabida e valorativa exclamação “que diferença!” (5).
O ano de 1922 foi para Judith Teixeira um período de tirocínio e de preparação para o embate de 1923. E, de facto, tal ano, que é o da publicação do livro de poemas Decadência, não poderá ser dissociado da polémica da “literatura de Sodoma” que invadiu o palco lisboeta. O fundamentalismo conservador e moralista, personificado por um conjunto de jovens integristas chefiados por Pedro Teotónio Pereira, avança e acirra as autoridades no sentido da reacção àquilo a que eles chamavam “literatura dissolvente”. Nessa onda de incompreensão embarcam os responsáveis políticos e militares, que, sem pestanejar, ateiam a fogueira, recriando, nessa patologia ígnea, os velhos autos-de-fé de tão ingrata memória. Sodoma Divinizada de Raul Leal, Canções de António Botto e Decadência de Judith Teixeira são arrestados das livrarias e queimados publicamente junto ao Governo Civil.
Pessoa defende Botto e Leal (6), mas nada diz sobre Judith. Aquilino Ribeiro não só defende a poetisa, como a diz “uma poetisa de valor” (7). Posição semelhante, no jornal A Capital, adopta um António de Monsanto, o qual, para lá de ver na apreensão do livro judithiano um “excesso de zelo”, exalta o “belo espírito de artista” da poetisa e o renovador aspecto gráfico do livro de poemas (8). De resto, só um silêncio comprometido e um número não desprezível de vozes coléricas, que não de leitores.
E, no entanto, esse livro debutante, se titularmente parece preso ao epigonismo de-cadentista – e lembro que, como o diz Calinescu (9), o Decadentismo é uma das faces da modernidade -, contém em si virtuosismos que permitem aproximá-lo do Modernismo, seja pelo vezo sáfico, seja ainda pelo dialogismo com as artes plásticas, não sendo despi- cienda ainda a sugestão surrealista que perpassa em alguns desses poemas. Lembro, por exemplo, o poema “A Estátua”, para que se não perca esta prova de ineditismo erótico e de ousadia expressional judithiana na década de vinte. Diz o texto:

O teu corpo branco e esguio
prendeu todo o meu sentido...
Sonho que pela noite, altas horas,
aqueces o mármore frio
do alvo peito entumecido...

E quantas vezes pela escuridão,
a arder na febre dum delírio,
os olhos roxos como um lírio,
venho espreitar os gestos que eu sonhei...
..................................................................
- Sinto os rumores duma convulsão,
a confessar tudo que eu cismei!
.................................................................
Ó Vénus sensual!
Pecado mortal
do meu pensamento!
Tens nos seios de bicos acerados,
num tormento,
a singular razão dos meus cuidados!
Fevereiro – Noite Luarenta
1922 (10)

De facto, esta estesia perante o corpo feminino que o sujeito poético manifesta, se, por um lado, convoca as mulheres esculturais de um Klimt ( e lembro obras suas como “O Teatro de Taormina” (1886-1888), “A Escultura” (1896), “Nuda Veritas” (1899), “Judith I” (1901), “Judith II” (1909), ...) e o conexo deslumbramento pelo narcisismo lésbico, universo a que o mesmo Klimt (1862-1918) também aderiu (uerbi gratia, com “Serpentes de Água-II” (1904-1907)), não deixa ainda de ser verdade que nessa obsidência se tipifica uma indenegável e modernista estratégia da ruptura. Aliás, a interactividade da obra literária judithiana com as artes plásticas, no bom sentido dos melhores modernistas, será uma constância ( poemas “Por Quê?” e “Liberta”, ambos de Decadência, são exemplo suficiente), tendo a própria poetisa sido retratada por Carlos Porfírio (1922 ou 1923) e por Guilherme Filipe (1926), dois pintores de manifesta actualidade epocal.
Tal vertente homoerótica, projectada ou vivenciada pela poetisa, é, na sua constância sem exclusivismo, uma característica não despicienda à época – e relembro que falamos de 1923 –, transformando-se, nesse indefectível arrojo contra as vozes da turba escandalizada, em condição de originalidade poética sem sujeição. E é assim, de novo no rasto de Klimt, cuja obra Judith Teixeira parece ter conhecido e interiorizado, que encontramos no poema “Perfis Decadentes” uma intensa cena de deflagração lésbica do amor que a poetisa poderia perfeitamente ter ido “beber” à já mencionada “Serpentes de Água II” do pintor austríaco, obra que retrata, segundo Gilles Néret, “um mundo narcisista povoado de lésbicas que se enrolam em espirais nas correntes, feito de sonhos aquáticos”. Diz assim o poema:
Através dos vitrais
ia a luz espreguiçar-se
em listas faiscantes,
sobre as sedas orientais
de cores luxuriantes!

Sons ritmados dolentes,
num sensualismo intenso,
vibram misticismos decadentes
por entre nuvens de incenso...

Longos, esguios, estáticos,
entre as ondas vermelhas do cetim,
dois corpos esculpidos em marfim
soergueram-se nostálgicos,
sonâmbulos e enigmáticos...

Os seus perfis esfíngicos
e cálidos
estremeceram
na ânsia duma beleza pressentida,
dolorosamente pálidos!

Fitaram-se as bocas sensuais!
Os corpos subtilizados,
femininos,
entre mil cintilações
irreais,
enlaçaram-se
nos braços longos e finos!
..................................................................
E morderam-se as bocas abrasadas,
Em contorções de fúria, ensanguentadas! (11)
(...)
Se, do ponto de vista temático, as semelhanças são iniludíveis, não deixa ainda de ser verdade que estilematicamente há traços afins que permitem afirmar haver relações de intertextualidade entre os dois autores e as duas obras citadas: os vitrais judithianos serão, afinal, a linfa klimtiana; as algas multicolores e coruscantes do pintor são transfor-madas por Judith “em listas faiscantes, / sobre as sedas orientais / de cores luxuriantes”; as rotas aquáticas em espiral da obra plástica são agora “nuvens de incenso” (e olhe-se o desafio!) e “as ondas vermelhas do cetim”; os corpos oblongos e estilizados do pintor Gustav são em Judith longos, “esguios, estáticos, /...corpos esculpidos em marfim”; os klimtianos rostos de mulher, misto de frigidez e efervescência, são pares dos judithianos “perfis esfíngicos, / e cálidos” que estremecem “na ânsia duma beleza pressentida, / dolorosamente pálidos!”; os compridos braços de dedos longilíneos das mulheres narcísicas do artista de Baumgarten (Viena) estão também presentes “nos braços longos e finos” das criações da mulher-poeta viseense; o halo irreal ou surreal que recobre o conjunto plástico de tonalidade onírica é equipolente da atmosfera de sonho que conquista o centro do poema através daqueles “corpos subtilizados, / femininos, / entre mil cintilações / irreais”; e, por fim, uma mesma dimensão de tragédia e de revolta decadentista-modernista na deflagração amorosa, citando eu o exuberante exemplo “E morderam-se as bocas abrasadas, / em contorções de fúria, ensanguentadas!”.
Tragédia decadentista e coragem modernista, eis o que se colhe desta interacção textual. Judith Teixeira, influenciada pelas artes em geral e pelas artes plásticas em particular, desde o seu primeiro livro de poesia, de que citei exemplos evocativos, prova obedecer ao preceito de Georges Bataille segundo o qual a arte autêntica é forçosamente prometeica. A transgressão e o voo livre pelos interditos faziam de Judith Teixeira, desde 1923, um caso raro de afirmação de um lugar poético original e sem sujeição. Mas, como sempre acontece, estar com os tempos modernos era ainda demasiadamente cedo para que a sua inscrição literária se viesse a fazer em época de fundamentalismo misógino e de gradual fechamento político. E, como o diria um Gil de Carvalho (12), já no último lustro de Novecentos, ela era um misto de Florbela Espanca e de Irene Lisboa, sendo, por isso, de lamentar tão grande silêncio dos escoliastas literários. Mas não de todos, como veremos à frente...
Não se fica pelo referido o virtuosismo literário de Judith Teixeira. De facto, uma outra voz coeva, que a poetisa portuguesa com toda a certeza desconhecia – e falo de Delmira Agustini (1886-1914), a cultuada pitonisa uruguaia do modernismo hispânico (13) -, manifesta afinidades electivas, poéticas e biográficas, com Judith. Aliás, essa convergência de articulação poética já foi notada por um René Garay (14), que defende que a subversão das imagens consagradas é comum em ambas: o cisne de Delmira nada deve à simbologia do modernismo hispânico glosada pelo seguidores de Ruben Darío, antes se subtilizando em desejo irreprimível no poema “El cisne” do livro Los cálices vacíos (1913), o que, afinal, também acontece com Judith Teixeira nos poemas “Ao Espelho” (“e eu vou pensando, / no cisne branco e mudo / que no espelhante lago adormeceu”) de Decadência ou na composição poética “Ilusão” de Nua. Poemas de Bizâncio (1926), que é, sem dúvida, uma fulgurante exemplificação da capacidade estranhizante das imagens judithianas, com a sua pregnância onírica animada por uma belíssima criatura “esculpida em neve” que tem sobre a nudez jovem do corpo “dois cisnes erectos”. Mas esta atinência é muito mais completa, passando não só pela coincidência biográfica (apodo de sáficas, recurso ao divórcio, colaboração em revistas, rebeldia e insubmissão, silenciamento...), como principalmente por uma “technê” criadora plena de sensualidade e de inferências decadentistas, modernistas e vanguardistas (“Os meus versos não têm escola – são Meus!”, gritará Judith Teixeira, em 1926, na importantíssima conferência De Mim), criando-se no processo estádios eróticos diversos mas interligados entre si pela lei do desejo que é sempre mais imaginação, mais transgressão e mais fantasia.
Nesse mesmo ano de 1923, Judith Teixeira escreveu Castelo de Sombras, livro menos arrojado, de tom vincadamente cinéreo e dessorado, de imediata atracção pela correlação com Castillo Interior ou Tratado de las Moradas (1577) de Santa Teresa de Ávila, não havendo, como poderia parecer, qualquer estratégia de submissão às vozes críticas, até porque as datas dos poemas são coevas das de Decadência. Em 1925, a poetisa dirige a cosmopolita revista Europa, de que se conhecem três números nesse mesmo ano, nela tendo colaborado nomes literários como os de Américo Durão, Aquilino Ribeiro, Carolina Homem Christo, Ferreira de Castro, Florbela Espanca ou Reinaldo Ferreira, sendo ainda de realçar o destaque dado à ilustração, à fotografia e às artes plásticas, com reprodução de obras de Almada Negreiros, Amadeo, Eduardo Viana, Mário Eloy... No ano seguinte, em 1926, publica-se Nua. Poemas de Bizâncio, livro que António Manuel Couto Viana exalta como a melhor e mais moderna criação judithiana. Instala-se de novo a polémica e ARIEL, pseudónimo de Álvaro Maia, sempre ele, refere-se a “versalhadas ignóbeis à Judith Teixeira”. Ainda no calor da refrega, faz publicar a poetisa uma brilhante conferência intitulada De Mim, importante texto para o aclaramento da indenegável inteligência e modernidade da escritora, só espantando que um paratexto literário deste nível permaneça desconhecido de boa parte dos amantes da literatura. Segue-se, já no início de 1927, um livro de novelas intitulado Satânia, e até por aí, pela sugestão titular, é indesmentível a aproximação, fortuita embora, com Delmira Agustini. O rasto de Judith começa a perder-se, farta certamente da restrição isegórica (15) a que tinha sido sujeita e de todos os ecos escandalosos de um jornalismo lateral e de uma crítica literária adepta do mito do “eterno feminino”. Conhecem-se ainda, por finais da década de 30, dois textos de opinião judithianos, um sobre a família, outro sobre o desemprego do espírito, ambos subsumidos já ao conservadorismo, ambos manifestantes de uma límpida e ática escrita.
Mas... quem conhece Judith Teixeira? Encostada a uma época de tradição e de mudança, a notável poetisa vive uma empenhada actividade marginal de transgressão do establishment, sabendo que esse carácter prometeico lhe valeria um longo e comprometido silêncio. Contra essa sanção simbólica, valeu bem a pena uma tão intensa e tão curta vida literária. Assim aconteceu com a uruguaia Delmira Agustini, com a chilena Teresa Wilms Montt (1893-1921) e com a argentina Alfonsina Storni (1892-1938), almas próximas do arrojo judithiano.

2. Mas peguemos em Régio, que desde há tanto espera por nós. José Régio é uma figura referencial da cultura contemporânea e uma das figuras literárias mais importantes do nosso novecentismo, todos o sabem. Avanço quatro nomes maiores e ele lá está: Pessoa, Régio, Vergílio e Eugénio, ainda no activo.
Mas nem sempre assim foi. Régio cumpriu um difícil e atribulado processo formativo. Iniciando-se sob o pseudónimo José Régio com a “Toada de Natal”, de 1921, no semanário A República de Vila do Conde, avançou o poeta com colaborações coimbrãs em 1923 e 1924, em publicações como A Revolta e Bizâncio. Para trás ficavam já os precoces tentames poéticos (Violetas, com doze ou treze anos) e prosásticos da adolescência, bem como a anterior pseudonímia de que é exemplo a subscrição Vénus, no poema “Amor” vindo a lume no jornal O Democrático de Vila do Conde, pelo ano de 1915. Ficavam ainda para trás as já mais maduras colaborações na publicação quinzenal Alma Nova de Espinho e nas portuenses A Crisálida e A Nossa Revista .
Este regiano conspecto debutante tem parelo, como vimos, com a primeira fase de Judith Teixeira, também ela imersa desde a adolescência em tentames literários e em colaborações por jornais e revistas. Voltemos, no entanto, ao tempo de Coimbra, época em que, como o sabemos pelas Páginas do Diário Íntimo, Régio procurava uma fórmula que resumisse o fim da sua Arte e que, até novas ordens, seria aquela que ele plasmou no seu diário com data de 22 de Fevereiro de 1923: “Revelar, numa forma toda criada em relevos ou em sugestões, quanto há em mim de simultaneamente mais humano e mais íntimo.” (16)
José Régio colabora na revista Bizâncio desde o primeiro número. Corre o ano de 1923 e o mês de Março, e eis que a nova revista coimbrã sai a lume com aquela nota programática de abertura da responsabilidade de Alexandre de Aragão: “Bysancio não significa de nenhum modo a sistemática exclusão da paisagem natural e formas nacionais pelo mármore dos cenários recompostos e nostalgias de poentes demorados e doentios. É mais um símbolo estético da união do que é uma resultante comum.” No entanto, e não obstante as palavras iniciais, replasma ainda a publicação coimbrã uma pesada influência simbolista e decadentista. Nela publica Régio o poema “Soneto dos Vencidos”, logo se seguindo, na revista nº 2, a “Canção do Regresso” e, no exemplar nº4, o poema “Humorismo a 40º de febre”. As vozes críticas logo se fazem ouvir, avultando, nessa reacção, os nomes de Álvaro Maia (17), sempre ele ( que por Maio, referindo-se ao segundo número da revista, não se contém que não diga: “O sr. José Régio colabora duplamente: em prosa e em verso. A Canção do Regresso, maus versos: a Ultima pagina, réles prosa cheia de blasfêmia. Cebo para estes bysantinos! Para estas misérias do sr. José Régio não valia a pena estar a incomodar do somno poeirento a derrocada de Bysancio!”), e de um “amigo” de Régio, de apelido Cotta (?) (que diz, no terceiro trimestre de 1923: “Aquilo que V. compõe são bizarros retalhos de coisas que a mim, pelo menos, passam desapercebidas; o que V. ainda mais torna impalpáveis, filtrando-os pela sua imaginação ou mórbida ou exótica. Auguro-lhe que a sua compleição poética nunca se fará conhecer pelas suas composições.”) (18).
É conturbada a iniciação de Régio, que, como Judith, se viu envolto em polémica e com o mesmo Álvaro Maia, e que, ao contrário da poetisa, começa a ganhar notoriedade através da colaboração numa revista demasiadamente presa ao passado, enquanto a autora de Decadência começa a conquistar visibilidade na publicação que era o “canto do cisne” do 1º Modernismo. Ainda assim, evidentes atinências, em época do mais que certo contacto da poesia de Judith Teixeira com o leitor privilegiado que era já José Régio, não obstante a falta de provas documentais ou textuais.
Em 1926, publica Régio os Poemas de Deus e do Diabo , tendo o poeta defendido, no ano anterior, a corajosa e renovadora dissertação para licenciatura na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra intitulada As Correntes e as Individualidades na Moderna Poesia Portuguesa e subscrita pelo seu nome civil José Maria dos Reis Pereira. Entretanto, Judith Teixeira dá o melhor de si na direcção da revista Europa.
Enquanto se imprime Satânia, vem à tona viva do mundo o primeiro número da revista Presença, trabalho intensamente vivido naquela pequena casa coimbrã da Rua das Flores. E é nesse exemplar inaugural, com destaque de abertura, que se dá o primeiro encontro público de José Régio com Judith Teixeira, precisamente no derradeiro parágrafo do celebrado texto “Literatura Viva”:
“Eis como tudo isto se reduz a pouco: Literatura viva é aquela em que o artista insuflou a sua própria vida, e que por isso mesmo passa a viver de vida própria. Sendo êsse artista um homem superior pela sensibilidade, pela inteligência e pela imaginação, a literatura viva que êle produza será superior; inacessível, portanto, às condições do tempo e do espaço. E é apenas por isto que os autos de Gil Vicente são espantosamente vivos, e as comédias de Sá de Miranda irremediavelmente mortas; que todos os livros de Judith Teixeira não valem uma canção escolhida de António Bôtto; que os Sonetos de Camões são maravilhosos, e os de António Ferreira massadores; que um pequeno prefácio de Fernando Pessoa diz mais que um grande artigo de Fidelino de Figueiredo; que há mais fôrça íntima em catorze versos de Antero que num poemeto de Junqueiro; e que é mais belo um adágio popular do que uma bela frase de literato.” (19)
Esta tirada, que Judith poderá ter entendido como negativa para si, é, a meu ver, o primeiro texto crítico que afirma a presença irrefragável da poetisa na nossa memória literária, aí figurando a mulher-poeta ao lado dos não desprezíveis Sá de Miranda, Botto, António Ferreira, Fidelino e Junqueiro, prova, afinal, da convalidação de José Régio. Aliás, pouco depois do postulado regiano, é um Armando Vasconcelos de Carvalho que a diz, em páginas do Diário de Lisboa, “a melhor poetisa portuguesa da moderna geração”, com “poesias em que a sua autora recorta emoções de seu espírito, dos seus sentidos, de seus desejos.” (20) Nesta senda judicativa seja entendida ainda a opinião de João Gaspar Simões, que, dez anos volvidos, não deixa, no mesmo DL, de louvar a audácia da mulher-poeta (21).
Judith Teixeira é uma mulher de casos e descasos, de encontros e desencontros. Em sua casa consigo se encontraram, em Agosto de 1923, António Botto e Rafael Lasso de la Vega. Todos, incluindo Judith, vieram a encontrar-se com a morte naquele estranho ano de 1959: Judith morre em Lisboa, só e abandonada; Botto é estupidamente atropelado no Brasil; o ultraísta Lasso de la Veja é fulminado, por um ataque cardíaco, na porta giratória do Ateneu de Sevilha.
Não deixa ainda de ser espantoso que este indicioso ano de 2001, ano em que jubilosamente celebramos Régio e a sua acção literária com o pretexto da data do seu nascimento, tenha sido o ano da convalidação académica, aqui em Aveiro, em Outubro último, de uma primeira dissertação nacional e mundial sobre Judith Teixeira, vulto que, aliás, fora, meses antes, capa da revista Faces de Eva da Universidade Nova de Lisboa. Por fabulosa coincidência, que é mais um incindível encontro, a dissertação académica foi orientada pelo Professor Eugénio Lisboa, o mais resistente e estruturado regianista.
Régio e Judith Teixeira: eis um encontro entre uma voz nodal e uma “brasa ardente” que o esquecimento não logrou sepultar. Boa-tarde, Régio. Boa-tarde, Eugénio Lisboa.


* Este texto reproduz, com alterações, uma comunicação apresentada na Universidade de Aveiro (8º Encontro de Estudos Portugueses, 22 de Novembro de 2001) e posteriormente publicada em Presenças de Régio (Universidade de Aveiro, 2002).
(1) Sobre a data de nascimento de Judith Teixeira, nem sempre as informações têm sido as mais correctas. Face à escassez documental, não espanta o equívoco. A edição de Poemas (Lisboa, &etc, 1996), da responsabilidade de Maria Jorge e Luís Manuel Gaspar, prova a naturalidade viseense da escritora e transcreve a prova irrefutável do assento de baptismo - que eu também compulsei -, que fixa, em definitivo, o ano de 1880 como data de nascimento da artista, afastando assim a tradição nascente que referia a data de 1873. Menos justificável é, no entanto, aquela imperdoável falha da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira , combatida até à exaustão por Eugénio Lisboa, que “certifica” ter Régio nascido em 1899. E, assim, de falhanços flagrantes se vai construindo uma história que, muitas vezes, é glosa do erro e eco enternecido disso.
(2) Cf. Jornal da Tarde de 21 de Outubro de 1918, p. 1. Trata-se provavelmente do primeiro texto judithiano impresso.
(3) Cf. Jornal da Tarde de 10 de Janeiro de 1919.
(4) Judith Teixeira colabora em Contemporânea com os poemas “Fim” (nº 2, Junho de 1922, p. 59), “O meu chinês” (nº 6, Natal de 1922, p. 128), “A cor dos sons” (3ª Série, nº1, 1926, p. 41) e “Vaticínio” (este nunca passando das provas de prelo para a revista nº 14, a publicar por 1929, e que nunca conheceu a luz do dia).
(5) Em carta dirigida a Cortes-Rodrigues, Fernando Pessoa deixa cair os celebérrimos “que diferença! que diferença!”.
(6) Pense-se no ensaio pessoano “António Botto e o Ideal Estético em Portugal” (Contemporânea, nº 3, 1922) ou no reactivo texto, também de Fernando Pessoa, de título “Sobre um Manifesto de Estudantes”, bem como no intenso “Aviso por causa da Moral” de Álvaro de Campos.
(7) Disse-o Aquilino Ribeiro, em entrevista ao Diário de Lisboa de 20 de Julho de 1923.
(8) Cf. A Capital de 22 de Março de 1923.
(9) Matei Calinescu, As Cinco Faces da Modernidade (Modernismo, Vanguarda, Decadência, Kitsch, Pós-Modernismo), Lisboa, Veja, 1999.
(10) Judith Teixeira, Decadência.Poemas, Lisboa, Imprensa Libânio da Silva, 1923, pp. 15-16.
(11) Id., ibid., pp. 31-32.
(12) Cf. a recensão de Gil de Carvalho à edição de Poemas de Judith Teixeira, da responsabilidade de Maria Jorge e Luís Manuel Gaspar, no Independente de 8 de Novembro de 1996.
(13) Há uma evidente correlação estilemática entre Judith Teixeira e Delmira Agustini, como o comprovará uma qualquer espreitadela à obra judithiana e a Los Cálices Vacíos, por exemplo, da escritora uruguaia.
(14) Cf. René Garay, “Sexus sequor: Judith Teixeira e o discurso modernista português”, in Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher , nº 5, 2001, pp. 53-74.
(15) Sobre o conceito de isegoria, veja-se Telmo Verdelho, “DA ISEGORIA. Breve reflexão sobre o espaço verbal e o direito à palavra”, in Revista da Universidade de Aveiro/Letras, nº 3, 1986, pp. 139-156.
(16) José Régio, Páginas do Diário Íntimo, Lisboa, Círculo de Leitores, 1994, p. 8. Introdução de Eugénio Lisboa e Notas de José Alberto Reis Pereira.
(17) Cf. Álvaro Maia, “Revista das revistas: ‘Bysancio’ – revista coimbrã – nºs 1 e 2”, in Revista Portuguesa de 12 de Maio de 1923, p. 29.
(18) Será esta pessoa de apelido Cotta pai ou familiar de António Rebelo Cotta, que apresentou à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, em finais da década de quarenta, a dissertação para Licenciatura em Ciências Históricas e Filosóficas de título Fundamentos de uma Gnoseologia Pura (Coimbra, 1947)?
(19) Presença, nº 1, 10 de Março de 1927, p. 2.
(20) Diário de Lisboa de 15 de Agosto de 1927.
(21) João Gaspar Simões, no “Suplemento Literário” do Diário de Lisboa, nº 86, de 29 de Janeiro de 1937, p. 4, ao proceder à recensão de obras de autoria feminina, relembra o arrojo judithiano.

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2006-05-20

deambulações fáceis

Klimt

"Deambulações fáceis, por entre tantas colunas, com um passo quase elástico, sobre esses tapetes espessos feitos de ganchos de cabelos vegetais. Labirinto fácil.
Passeemo-nos à vontade por entre as colunas, essas árvores libertas de ramos caducos!"
(Francis Ponge, O caderno do pinhal)

2006-05-19

O lume e o chão (romance a duas mãos)



AUTORIA: MATA HARI
CAPÍTULO 2º

MARTA CRIA OUVíDiO

Marta parecia-me sempre igual, apesar de, com o tempo, ter também ela ficado para lá dos lugares que agora conheço, numa espécie de névoa, com alguma angústia à mistura. Por vezes fazia-me chá e eu acariciava-lhe as costas. Adormecíamos os dois sem tempo para mais nada. A sociedade dos homens, tinha, há muito, começado a enganá-los, os dois procuravam, agora, partilhar um novo sentido para as coisas.

- Fala-me de ti, no passado. Das coisas que gostavas e que agora já não. Das coisas que te faziam rir e chorar como ainda agora ris e choras. E o contrário disso.
- Procuras-me sempre nos mesmos lugares!
- Eu sei, é me mais fácil encontrar-te, é-me mais fácil encontrar-me. É sempre uma forma eficaz de encontrar o que se quer, com o mínimo de esforço. E eu esforço-me pouco, muito pouco para me encontrar.
- Sabes, às vezes fico a pensar e duvido. Duvido de Helena, da forma e do modo como ela ainda vive em mim. Sabia sempre o que eu não queria. Raramente sabia o que queria.
- Os homens são criaturas cheias de dúvidas. Interrogam-se com as evidências e tu não deixas de ser uma excepção.
- Helena era uma excepção. Uma excepção na minha vida. Procurei sempre encontrar nela um pouco da minha parte que está vazia. A minha parte, talvez meia parte, ainda vazia.
- Como conheceste Helena?
- Já quase não me lembro. Na verdade, acho que nós só nos lembramos daquilo que realmente queremos é quase que uma atitude inconsciente de lembrar e deixar de lembrar. As imagens, os sons e os aromas ainda cá estão dentro, parece que ainda os sinto, mas estão amontoados em mim. A minha tem sido vivida um pouco assim, amontoada, aos bocados, às partes. Os anos aproximam-se silenciosamente e eu vivo para além de mim.

Por vezes e às vezes falávamos de nós. Das coisas que os outros falavam de nós e de tudo que estava em volta disso. Ela tinha dias que não me via, eu também não a via. Vivíamos e partilhávamos o mesmo espaço mas o nosso tempo era marcado de uma forma desigual.

- A vida é estranha, começamos sempre por desejar o que nos escapa e acabamos a detestar o que está ao nosso alcance.
- Helena apareceu-me um dia à tarde, era Outono. Havia folhas no chão pássaros já não e depois ela apareceu. Estivemos junto até hoje. As coisas mais inesperadas acontecem quando menos esperamos que elas aconteçam e nesse dia e nos que se lhe seguiram talvez tenha sido um pouco assim. Não sei de onde é que ela apareceu ou sequer de onde veio. Também nunca lhe perguntei, talvez porque nunca tenha realmente tido necessidade disso, talvez por que dessa forma não teria nunca de me iludir com nada, inclusive com aquilo que me estava a acontecer.

Naqueles dias trocávamos angústias e pequenos medos enrolados em lindos embrulhos, papel de rebuçado, laços cor de rosa, por vezes vermelhos. Mastigávamos os mesmos sabores, partilhávamos as mesmas cores que serviam de aperitivo na beleza de um mundo que queríamos muito ir recreando, aos poucos, às partes, aos bocados.

- Solta-me o vestido! Sim aí esse pequeno nó tenta deslaçá-lo. Nó cego.
- Sabes Marta, não consigo perceber o que me persegue. Se será realmente Helena, ou a parte dela que ainda existe em mim. Por vezes fico a pensar se os segredos que ainda guardo comigo e que ambos partilhávamos me podem servir de alguma forma para criar algo de novo. Talvez para me ir alimentando deles, em pequenos momentos que a memória vai deixando lembrar. O filho que ambos vimos crescer continua a ser a recordação mais forte que ainda tenho dela, ainda assim foge-me uma parte, que não consigo explicar, está a tornar-se invisível. Céu azul limpo sem nuvens.

Marta sabia sempre ocupar o seu lugar. Mesmo quando não havia lugar para ela. A sua presença marcava todo o espaço, por muito grande ou pequeno, sentia-a como ninguém mais. Demais.

- Arrepiam-me esses lugares.
- De que falas?
- Sítios de lugar nenhum. Lugares de exílio talvez. São sempre assim, aí procuramos alguma coisa sem percebermos muito bem o quê, nem sequer sabendo se existem. Eu também não sabia da tua existência.
- Descreve-me Helena ao contrário. Como que do mesmo lado, mas ao inverso. Reverso.
- Helena por vezes gelava-me com os seus beijos. Os olhos dela procuravam sempre encontrar algo de novo à sua volta.

Para Helena o mundo fechava-se. Por vezes partia em função de nada, e à procura de nada. Ouvíamos o barulho do mar, passar por detrás e depois ela fazia sempre aquele sorriso de como e quando a conheci. Às vezes ela ia e voltava, sem saber ou perceber porque ia e voltava e tudo ficava igual ao que sempre tinha sido. As vezes perguntava-lhe de quanto tempo mais precisava para chegar a esse lugar. Sabia que fugia de mim, mas também dela e do mundo que tinha deixado ficar para trás. Sabia que fugia do medo, da morte das coisas que sentia trazer agarradas a si. Coladas.

Naquele ano as coisas tinham começado mal. Entre eles as discussões agravaram-se e as coisas sempre estiveram por um fio e nem um nem outro queriam segurar o que ambos assumiam como perdido. Por vezes punha-me a pensar procurando perceber por que é que as coisas se tinham passado daquela forma. Angustiava-me pensar tudo aquilo que iríamos perder para sempre. O presente.

- Sabes Helena, às vezes penso que teria sido melhor para ambos se não nos tivéssemos conhecido. As coisas acontecem, na maior parte das vezes e durante muito tempo não encontramos justificação para elas. Não encontramos justificação para que eles ocorram daquela maneira e um dia paramos e pomo-nos a pensar um pouco sobre tudo o que se passou antes, como se passou e perguntamos será que valeu a pena?
- Um dia o mundo cai-nos em cima e depois começamos por que é que isso aconteceu. Porquê nós?

Helena tinha os cabelos louros, por vezes dourados pelo sol, olhos verdes cor de cereja e vestia-se sempre em tons de azul. Oceano. Ao fim do dia caminhava pelo campo em volta da casa que o seu pai lhe tinha deixado em herança. A sua mãe tinha desaparecido, era ela muito pequena, tão pequena que já não se lembrava. Do seu pai também não, a não ser por fotografias que guardava na sala num armário ao fundo e que por vezes procurava encontrar. Amar. Caminhava pelo campo em busca da sua alma, ou de uma coisa qualquer que pudesse substituí-la, talvez mesmo esse sentido. Pesado.

- Quando somos crianças o mundo cabe-nos numa das nossas mãos. Sorrimos e pensamos que lindo é o teu sorriso, quando sorris. Para mim estás sempre a sorrir.
- Gosto muito de ti ao contrário. Beija-me.
Perguntava-lhe sempre o que é que isso poderia significar, mas ela nunca me deu o significado. Codificado.

Às vezes caminhávamos juntos pelo campo, procurávamos ver e ouvir os pássaros que fugiam por cima das nossas cabeças. Tocava-mos com as mãos, por vezes suadas. Tínhamos sempre tempo para nos beijar. Kiss me dear.
- Sabes Marta, não sei explicar as coisas que me acontecem. O sentido que os outros têm delas, nunca é o mesmo que eu lhe procurei dar. Há sempre uma coisa que não liga com a outra e por mais que eu queira não consigo encontrar esse ponto que as liga. Electricidade.
- Beija-me com a tua boca. Desejas-me?
- Não se deseja aquilo que não conhecemos.

Marta lembrava a arte de amar e pensava que a beleza não bastava para se ser amado. Eu disse-lhe que a amava ela disse-me que não. Esse não poderia significar muita coisa, ou talvez até nada, bastava que para isso pudesse lembrar-me de tudo que já tínhamos passado juntos. Talvez um dia o amor chegasse, quando menos esperássemos. Olá.

- Lambe-me os pés. Depois o rosto.
- Sabes como me chamo?
- Que o amor penetre sobre o nome da amizade. Persistência.

2006-05-18

Vergílio Ferreira e Viseu







"O equívoco da relação do real com o imaginário sobre ele construído, nasce da obstinada ideia de que um está contido no outro, de que o imaginário é um real composto - e nunca a ideia de que o imagi nário é uma realização de si própria que (re)inventa o real do qual partiu. O real é um monturo sem significação legível e é necessário que a arte o (re)invente para ele começar de facto a existir. O que se reencontra no real não está lá, porque de facto o que lá está, depois de estar alguma coisa, foi o imaginário do artista que o lá pôs. O real em bruto não é nada, antes de o artista o transcender a uma significação que é a da arte."
(Vergílio Ferreira, Conta-Corrente (Nova-Série)-I , Venda Nova, Bertrand Editora, 1993, p. 98.)


0. A palavra literária que continua a dimanar da lava vergiliana, actividade magmática por sobre o fogo e as cinzas dos círculos dantescos onde os artistas e as obras de todos os tempos e lugares se telescopam num locus angelicus aos melhores reservado, sempre nos conduziu a espaços vergilianamente ditos "lugares do seu espírito". Esta aptidão da obra de Vergílio Ferreira tem paralelo com muitos autores, grande parte dos quais canonizados no incontornável The Western Canon. The Books and School of the Ages., do já celebérrimo Professor de Humanidades da Universidade de Yale Harold Bloom.
Assim, torna-se impossível - já antes o dissera Garrett - entender Shakespeare e esquecer Stratford-upon-Avon, ler Dante sem lembrar Florença ou Bolonha ou Verona, apreciar Chaucer sem assomar Londres, falar de Joyce e não aparecer Dublin, pensar em Sebastião da Gama e não surgir a Arrábida, degustar Eça e não sentir Lisboa... Defendemos, há um anos atrás, na primeira parte do artigo "Do mundo à aldeia do mundo: Melo na obra de Vergílio Ferreira" (Navio-Farol, nº 10, 28 de Janeiro de 1996), que o cursus vergiliano se constrói - com mítica alusão a Eneias de Virgílio, se bem que em diferente valência, já que a personagem do poeta de Mântua vê a sua Tróia destruída e dela se afasta em definitivo; ou ao Virgílio de Hermann Broch que, em estertor, guarda em si forças para chegar à antiga Brundisium ; ou, por último, a Leopold Bloom de James Joyce que regressa a casa depois de um longo dia - com a fundante presença do espaço da aldeia birthplace. É agora nossa intenção defender a asserção segundo a qual a cidade de Viseu, em transmigração ficcional ou em adstringência real, é um espaço vergiliano de eleição.

1. Ainda não iam longe as primícias de Vergílio Ferreira, quando pela primeira vez assoma na sua obra nascente o topónimo Viseu. Tal acontece no seu primeiro romance publicado, O Caminho Fica Longe (1943), o qual, pertencendo ao por nós chamado ciclo do banimento (em virtude de a partir daí se ter mantido impublicado, com Onde Tudo Foi Morrendo, por vontade do Autor), tem sido aproximado do presencismo por alguma crítica universitária.(1) São exemplares dessa recorrência os dois casos,únicos neste obra de ficção,que de imediato citamos:

I. “Viera logo nessa noite uma tia de Viseu. Uma tia expurgada de carnes, que tinha a espinha em arco. Amélia iria viver na cidade com a tia solteirona, que recebia hóspedes. Estudaria no Liceu (ainda ia a tempo, apesar dos 13 anos)” (p. 34).
II. “Lia-a no bâton, nos sapatos, na saia justa. Lia-a no namôro que ela tivera em Viseu e lia-a sobretudo nas relações com o rapaz da livraria” (p. 60) 2.

2. Em Mudança (1949), e para seguirmos as palavras patriarcais que Eduardo Lourenço lhe antepôs a partir da 3ª edição de 1969, temos um "livro que abre caminho através da sua própria construção, caminho que é ruptura ou, em todo o caso, desconfiança em relação à luz excessivamente clara que banhava então o nosso universo romanesco." E também aqui o vezo viseense se afirma com duas presenças contadas como a seguir se exemplifica:

I. “Toda a vila de Castanheira se alvoroçava com a inteligência do Raul. O Hermínios cantara-lha de alto. De Viseu, onde o rapaz estudava, vinham reforços de opinião (p. 76).
II. “Toda a serra era agora um braseiro enorme, e, a meio, uma claridade metálica começava, enfim, a abrir a promessa vermelha do Oriente. Um facho direito desfibrava as sombras desde a primeira brecha aberta para os lados de Viseu, varrendo a encosta como um farol” (p. 126)3.

3. Em Conta-Corrente (1977-1979)-II (1981), deparam-se-nos três utilizações diferenciadas da palavra ou da alusão que perseguimos, sendo o último caso, como veremos, do foro onomástico. Pela importância da presença do cão na obra de Vergílio Ferreira, pedimos uma natural atenção para o primeiro exemplo, que, a nosso ver, é um dos passos mais enternecedores da nossa literatura. Assim, temos:

I. “Sexta-feira fomos à Torre para o Lúcio escorregar na neve. Ontem fomos ao Porto com a mana e o Zé. No regresso, parámos no Restaurante do Caçador, um pouco adiante de Viseu, para se comprarem frangos assados. Chovia. Lúcio então reparou que na berma da estrada estava um cão a ganir. "Está a morrer", disse-me. O cão estava deitado de lado, as patas trementes no ar. E gania em súplica. Fui ver. Ganiu mais baixo, apelando para mim. Decerto um carro tinha-lhe passado por cima ou embatido contra ele, arremessando-o para a berma. Decerto tinha a espinha partida. Tentava pôr-se de pé, não conseguia. Eu estava junto dele, ele pedia-me ajuda. Tentava de novo erguer-se, as pernas trémulas no ar. Chovia-lhe em cima. erguia o focinho para mim. Gania sempre” (p. 28).

II. “Pelo que me diz respeito, o problema tem que ver sobretudo com o uso do "adjectivo". Ou o emprego e corro o risco de uma comida enjoativa, ou não o emprego e corro o risco de uma comida sem sal. A solução parece simples: usá-lo com conta e medida, como a religião segundo o bispo de Viseu”(p. 142).

III. “E o noticiário? Por exemplo, do Diário de Notícias no seu 1o número (quinta-feira, 29 de Dezembro de 1864), p. 3, 2a coluna... Ou idem, p. 2, 3a coluna: Nunca é tarde para uma triste nova. António de Almeida Viseu, correio da repartição central do Ministério das Obras Públicas, foi encontrado morto em sua própria casa.


4. No volume seguinte do consagrado diário (1983), Vergílio Ferreira fala-nos de uma viagem que fez de Melo a Viseu a fim de comprar uma casa pré-fabricada. Para os espíritos mais curiosos deixamos a informação de que a transacção não se efectuou. Tal se passa no trecho que à frente transcrevemos:

“Ora, na repartição houve um naco de terra que se me pôs como pertença a haver. E imediatamente se me levantou a velha hipótese de armar nele uma tenda. Era o apelo obstinado de uma voz de infância que eu julgava soterrado pela poeira dos anos. Falava ainda. E eu ouvia-a. Ora, a forma mais exequível de lhe dar ouvidos era o recurso desse processo moderno e evoluído que é uma casa "prefabricada". Fomos a Viseu, que é onde há disso aqui perto”(p. 89)5.

5. Em Conta-Corrente (1984-1985)-V (1987), num interessante momento de dissertação sobre o carácter aleatório dos prémios, aparece-nos o topónimo Viseu num título de uma obra de Henrique Lopes Mendonça:

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6. Ainda num volume do seu diário, e referimo-nos a Conta-Corrente (nova série)-IV (1994), o nome da nossa cidade volta a aparecer quando o Autor se queixa do imenso trabalho para que é convocado. Nesse pedaço, Vergílio Ferreira alude ao contacto por nós efectuado, enquanto membro e criador do jornal Navio-Farol 7, no sentido de uma colaboração que muito nos honraria e adianta as razões que o impossibilitavam sequer de dar resposta:

“É inacreditável a quantidade de trabalho que nos pedem. E raramente a pagar pela razão óbvia de que termos o nome no jornal para nossa pavonice, é prenda que não tem preço. De momento tenho aqui um pedido do jornal L'Humanité sobre os 500 anos dos Descobrimentos, da revista Nova Renascença sobre a morte do comunismo, do Arnaldo Saraiva sobre a minha relação de intelectual com o desporto; mais uma conferência em Coimbra sobre a importância do livro e da leitura; mais uma colaboração, por amor, para um jornal de uma escola de Viseu; mais um colóquio em Braga, com o reforço de uma cunha do meu amigo Prof. Santos Alves. Fantástico, não é assim? (...) Mas de toda esta chumbaria, vou ver se a do Arnaldo Saraiva me fere de asa.” (p. 24)(8)

6. Sabe-se ainda que os livros de Vergílio Ferreira - alguns deles... - estão indissoluvelmente ligados à tipografia mais conhecida de Viseu. Falamos, obviamente da Tipografia Guerra, que se situa, como se saberá, na Avenida Alberto Sampaio. A importância do livro e da sua aparência final muito devem a esse trabalho mágico de fabricação de "forças vitais na modelação do pensamento dos povos."9 Nessa gráfica foram impressos, com as naturais omissões que os livros que possuímos em casa permitem em conjunto com a natural distracção, títulos como Uma Esplanada sobre o Mar (1986), Até ao Fim (1987) ou A Estrela (1987) (10).

7. Pelo fogo redentor das conversas com interesse, é do nosso conhecimento - que sobre o por nós desconhecido outros falarão...- que, e tal fica para a história das relações de Vergílio Ferreira com a cidade de Viseu:

a) houve trocas epistolares dos Professores de Literatura Portuguesa e Linguística da Escola Superior de Educação com o Escritor, no sentido de ele estar presente num congresso por eles organizado, vindo a ter resposta, infelizmente negativa, datada de 26.11.91.;
b) o Dr. Fernando Paulo Baptista, após a publicação do artigo "Para a compreensão do que é e para que serve a ''língua materna''" em Navio-Farol (1994), recebeu de Vergílio Ferreira uma elogiosa missiva (Dezembro de 1994);
c) e, com a modéstia sempre imodesta que este desvelamento consente, nós mesmo recebemos, a propósito de textos vergilianos publicados, notícias encorajadoras do grande Mestre (31.01.95., 03.07.95. e 09.02.96.), a última das quais, por preceder em três semanas a sua morte, nos deixa sempre comovido.

8. Mas, se alguma dúvida restasse sobre o pendor, não sempre explícito, desse vez o vergiliano, pense-se que o seu corpus textual, sem dúvida um dos mais valiosos da literatura portuguesa, iniciado naquele incipit ”Antes de mais, convém esclarecer que nos não propomos (ai de nós! ) resolver o dícil problema de saber se Camões teria ou não lido Platão”(11) e culminado no doloroso e muito belo explicit “Pudesse ao menos na minha memória doente recuperar o que tant.........”(12), à cidade de Viseu veio pagar o seu tributo na memorável jornada de 27 de Janeiro de 1996.

De facto, a homenagem organizada pela Universidade Católica de Viseu, ao unir na nossa cidade a família vergiliana, com a presença da maioria dos mais reputados estudiosos da sua obra ( por ordem de comunicação, Maria Alzira Seixo, Carlos Reis, Gavilanes Laso, Rosa Goulart, Fernanda Irene Fonseca, José Carlos Seabra Pereira, Helder Godinho e Maria Joaquina Nobre Júlio) e com a ausência presente de Eduardo Lourenço, tornou eternos os laços que sustentam a tangência que atrás procurámos provar. A par disso, os oitenta anos assim celebrados, um romance prestes a sair e a todos anunciado ou a morte insuspeitada que espreitava naquele discurso engenhoso e vibrátil, tudo disse definitivamente, porque fomos os últimos a tê-lo para nós - e que o diga a juventude que o cercava...-, numa girândola de autógrafos e de festa, que Viseu, se já era parte de si, nele se incorporou para sempre. O soubemos até quando lemos em Cartas a Sandra , obra que o Autor já não viu nas bancas, que da sua aldeia, do lugar da sua origem e da sua morte, se vêem “as terras longínquas, pontuadas de branco, e mais longe, esfumadas num tom violeta, a serra do Caramulo.” (p. 153). Encaixada entre a Estrela e o Caramulo, no horizonte vergiliano, não deveria a cidade de Viseu, sem quaisquer polémicas, atribuir uma rua (avenida, largo, praça...) a este ícone literário e cultural que, em órgãos regionais e nacionais, tanta visibilidade deu ao nosso burgo,em 1996, nesse início do fim? Ou estaremos, como o pretende Eduardo Lourenco, perante um cavaleiro apocalíptico de um mundo deserto, voz sem voz porque sobre a voz? Poderão as inacções privadas, vício do por-fazer, ocultar alguma vez o "alto conceito que Vergílio Ferreira tem do homem" e, "contraditoriamente com outras afirmações do seu discurso, tem de Deus" (13)? Terrível palavra é um não, anunciou-o um dia Pe António Vieira. E nós, acaso seremos homens sem vontade?

Notas:

1 Veja-se, a propósito, o fundamental artigo de Aniceta Mendonça "Breve notícia do primeiro romance de Vergílio Ferreira", ínsito nos Anais do VII Encontro Nacional de Professores Universitários Brasileiros de Literatura Portuguesa (Belo Horizonte, Centro de Estudos Portugueses da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, 1979). Sobre O Caminho Fica Longe diz-nos a estudiosa brasileira que ele é "peça importante no panorama romancístico dos anos 40 em Portugal" (p. 154), porque "explica e exemplifica o estado do romance antes do advento do Neo-Realismo" (p. 155), porque "é um romance presencista" (ibid.) e porque antes dele "só três romances presencistas haviam sido publicados: Elói ou Romance numa Cabeça (1932) e Amigos Sinceros (1941), de João Gaspar Simões; Jogo da Cabra Cega (1934), de José Régio." (ibid.) E mais à frente conclui Aniceta Mendonça que lermos este romance "é lermos, de um só golpe, o romance português dos anos 40." (p. 156) Razões de sobra, portanto, para a convocação desta nota...
2 Vergílio Ferreira, O Caminho Fica Longe, Lisboa, Inquérito, 1943. Em dedicatória a seu cunhado, o Professor José Augusto Rodrigues, Vergílio Ferreira refere-se a este título como o "início da sua aventura".
3 Id., Mudança, 3a ed., Lisboa, Portugália Editora, 1969.
4 Id., Conta-Corrente (1977-1979), 2a ed., Amadora, Livraria Bertand, 1981.
5Id., Conta-Corrente (1980-1981) ,Amadora, Livraria Bertrand, 1983.
6 Id. , op. cit. , Bertrand Editora,
7 O jornal Navio-Farol , que é propriedade da Escola EB 2,3 Infante D. Henrique, foi fundado em 1991 e é, sem sombra de dúvida, o jornal local que, não obstante os escassos seis anos de vida, maior destaque tem dado à obra de Vergílio Ferreira. Nas suas páginas, se esquecermos as recensões e os textos de jovens alunos, foram publicados, por ordem diacrónica, os seguintes artigos de temática vergiliana: "Vergílio Ferreira: escrita sempre (e)terna" (MGS: 1992), "Para a compreensão do que é e para que serve a ''língua materna'' (FPB: 1994), "A expansio do título em Vergílio Ferreira ou uma questão de coerência titular" (MGS: 1995), "O tempo do romance vergiliano: as estações do ano; as horas do dia" (RMG: 1995), "Do mundo à aldeia do mundo: Melo na obra de Vergílio Ferreira (I)" (MGS: 1996),"Do mundo à aldeia do mundo: Melo na obra de Vergílio Ferreira(II)" (MGS: 1996), "O literário como real absoluto" (JCSP: 1996), "A e W " (MCNM: 1996), "Do mundo à aldeia do mundo: Melo na obra ficcional de Vergílio Ferreira(III)" (MGS: 1996), "Vagão "J" e a celebração do signo-I" (MGS: 1996), "Nótula sobre Vergílio Ferreira num espaço de sedução" (FAL: 1997) e "Vagão "J" e a celebração a o signo-II" (MGS: 1997). A chave que permite decodificar as siglas pospostas aos artigos é a subsequente: FAL= Fernando Alexandre Lopes; FPB= Fernando Paulo Baptista; JCSP= José Carlos Seabra Pereira; MCNM= Mário Casa Nova Martins; MGS= Martim de Gouveia e Sousa; e RMG= Rosa Maria Goulart. Fora do vezo vergiliano, passaram por Navio-Farol , com textos seus, para lá dos atrás citados, nomes como os de Alexandre Alves, António Francisco Caldas, António Manuel Ferreira, António Manuel Ribeiro, António Soares Marques, Dalila Rodrigues, Duarte Barrilaro Ruas, Eduardo Lourenço, Fernando de Gouveia e Sousa, Georgino Rebelo Marques, Henrique Barrilaro Ruas, Humberto Liz, João Gil, Luís Calheiros, Luís Miguel Nava, Olavo Lobão, Pedro Albuquerque, Pedro Sobral ou Rui Silvares.
8 Vergílio Ferreira, Conta-Corrente (nova série)-IV, Venda Nova, Bertrand Editora, 1994.
9 Douglas C. McMurtrie, O Livro. Impressão e Fabrico., 2a ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1982, p. 617. Esta obra é fundamental para o conhecimento histórico do trajecto que o livro cumpriu e cumpre desde a lucubração até às montras das livrarias.
10 Trata-se da magnífica edição desta short-story, anteriormente publicada em Apenas Homens (1972) e Contos (1976), agora em edição numerada de 1 a 200, ilustrada por Júlio Resende e assinada por Vergílio Ferreira, em papel Conqueror (Lisboa, Quetzal Editores, 1987).
11 Vergílio Ferreira, Teria Camões lido Platão? (Notas sôbre alguns elementos platónicos da lírica camoniana) , Separata de Biblos, vol. XVIII, tomo I, Coimbra, 1942, p. 1.
12 Id. , Cartas a Sandra, Venda Nova, Bertrand Editora, 1996, p. 155.
13 Maria Joaquina Nobre Júlio, O Discurso de Vergílio Ferreira como Questionação de Deus (Ensaio Interdisciplinar), Lisboa, Edições Colibri, 1996, p. 32.