2005-11-27

Ruínas


um dia o sol dentro das cinzas. um brilho de azeite inundava o dia. um espaço uma casa um livro aberto contra a luz. e também morada da sombra. onde as letras na fonte, onde a música do corpo? o cérebro vem à cidade, talvez lembrando o vício. do pobre fogo das palavras só a inveja se alimenta. e no entanto este polvo intacto e esta mágoa cruzam o sangue e explodem nas gavetas do corpo. quando assim a ordem e a biblioteca? quando a ruína fora da noite? e a mesma cor dentro da língua?

2005-11-23

Branquinho da Fonseca em Aveiro



RESTAURAÇÃO

Se me vierem procurar: não estou. Quando me
fecho em casa é para ser só eu: delicado e bru-
tal, humilde e altivo, sacrificado e egoísta: o
bem e o mal! humano! Sem atitudes seguidas.

(Branquinho da Fonseca, presença 18 )

2005-11-22

A genialidade trágica de Rodrigo Emílio

volta a voz. dita assim "como carvão aceso numa urze em flor":
"(...Enquanto eu desço os teus braços
Numa sede de dedos inocentes...)"
(Rodrigo Emílio, As lágrimas ancoradas à sombra do amor)

2005-11-20

a mitologia do sangue em Luís Calheiros

à sombra dos dias um traço corta a folha breve. não há esgar que não seja tormento. os liames das parcas retesam os músculos e a carne. também em tempos fui provérbio. agora subo por este catre que é o abismo da criação. vou preso e talvez seguro. nem a pedra me trava o passo. de repente um breve lume. assim a pintura e o suplício.

2005-11-14

a água em cuja pele

coisas existem inominadas. junto ao flanco do pensamento o olhar directo corta o gelo. nem o mar do inverno arrefece o objecto. da única treva opressa um sopro esbarra na retina. nada importa já. nem mais estradas dentro da noite. o sol vem a pique dentro do cérebro. um relâmpago fende a espessura dos ossos. agora a mão no rosto, pensativa. as pedras rodam em volta. os gestos repousam na sombra. o porão do passado estende-se na varanda. rápida a chuva. por fim, a água em cuja pele.

2005-11-10

da memória e do esquecimento


esquecer para melhor dizer, eis um passo sempre irrecusável.

2005-11-08

olhar para dentro


«123 Não queiras saber tudo. Deixa um espaço livre para te saberes a ti.»
(Vergílio Ferreira, Pensar )

2005-11-07

Perfuração



à sombra da casa rói o tímpano. e nem asa ou chama dentro do corpo. assim a medida de meus dias:

casca encostada ao fogo e um dedo nos lábios. por ti esperando, pérfido abutre.

2005-11-05

alexandrino



"a língua submetida a meus caprichos"
(antónio franco alexandre, uma fábula)

2005-11-03

epitáfio


Impôs-me o tempo
um pacto
dia a dia renovado
Jamais a paz dos gestos
sempre a guerra
do silêncio envenenado
(António Manuel Ferreira, barca d'alva, 1995)

2005-11-01

no fio da navalha

cai no chão o corpo espacejado. nem lâmina ou gume o corrompe. pesado jaz no jardim. estátua morta desafia os céus e o voo ácido das pombas. no horizonte ondulam sinais de bronze. a morte eterna vem agora no volteio das folhas outoniças. súbito o vento empurra a folhagem e mostra o brilho frio. a pedra amolece contra a rajada. um pouco de morte ainda. dentro da noite.